17/01/2012

Reflexões sobre a ampliação do Ensino Fundamental para 9 anos







A cada idade corresponde uma forma de vida que tem
valor, equilíbrio, coerência que merece ser respeitada e
levada a sério; a cada idade correspondem problemas e
conflitos reais (...), pois o tempo todo, ela (a criança) teve
de enfrentar situações novas (...). Temos de incentivá-la
a gostar da sua idade, a desfrutar do seu presente.[1]
George Snyders




Tomo a liberdade, como pai mas também como psicanalista infantil, para chamar a atenção de todos a alguns aspectos relativos às mudanças advindas nas novas regras impostas pelo MEC, e que afetam profundamente o processo de desenvolvimento pedagógico, emocional e social de nossos filhos. Ou seja, aspectos que me chamam a atenção por sua complexidade e consequência, e que não podem ser menosprezados ou minimizados.

Na terça feira passada, 01/11, ao deixarmos nosso filho na escola, no G3, nos foi dada uma notícia de que nosso filho não poderia seguir com a turma dele em 2012, com os amigos dele, com as referências dele, e seria retido. Ou seja, ele teria que fazer o G3 novamente, pois de acordo com as novas regras do MEC para a Educação Nacional ele estaria muito adiantado para sua turma atual, pois faz aniversário em 26 de abril, 26 dias (!!!) depois da data limite de 31 de março fixada pela nova lei.


O que diz a lei

A legislação federal que trata da ampliação do Ensino Fundamental de 8 para 9 anos pode ser consultada abaixo (com uma simples busca no Google é possível termos acesso a todas essas leis):

Lei n° 10. 172, de 9 de janeiro de 2001 - Aprovou o Plano Nacional de Educação/PNE. O Ensino Fundamental de nove anos se tornou meta progressiva da educação nacional 
Lei n° 11. 114, de 16 de maio de 2005 – torna obrigatória a matrícula das crianças de seis anos de idade no Ensino Fundamental.
Lei n° 11.274, de 6 de fevereiro de 2006 – amplia o Ensino Fundamental para nove anos de duração, com a matrícula de crianças de seis anos de idade e estabelece prazo de implantação, pelos sistemas, até 2010.
Parecer CNE/CEB n° 24/2004, de 15 de setembro de 2004 (reexaminado pelo Parecer CNE/CEB 6/2005): Estudos visando ao estabelecimento de normas nacionais para a ampliação do Ensino Fundamental para nove anos de duração.
Parecer CNE/CEB n° 6/2005, de 8 de junho de 2005: Reexame do Parecer CNE/CEB no24/2004, que visa o estabelecimento de normas nacionais para a ampliação do Ensino Fundamental para nove anos de duração.
Resolução CNE/CEB n° 3/2005, de 3 de agosto de 2005: Define normas nacionais para a ampliação do Ensino Fundamental para nove anos de duração.
Parecer CNE/CEB n° 18/2005, de 15 de setembro de 2005: Orientações para a matrícula das crianças de seis anos de idade no Ensino Fundamental obrigatório, em atendimento à Lei n° 11.114/2005, que altera os arts. 6°, 32 e 87 da Lei n° 9.394/96.
Parecer CNE/CEB n° 39/2006, de 8 de agosto de 2006: Consulta sobre situações relativas à matrícula de crianças de seis anos no Ensino Fundamental.
Parecer CNE/CEB n° 41/2006, de 9 de agosto de 2006: Consulta sobre interpretação correta das alterações promovidas na Lei n° 9.394/96 pelas recentes Leis n° 11.114/2005 e n° 11.274/2006.
Parecer CNE/CEB n° 45/2006, de 7 de dezembro de 2006: Consulta referente à interpretação da Lei Federal no 11.274/2006, que amplia a duração do Ensino Fundamental para nove anos, e quanto à forma de trabalhar nas séries iniciais do Ensino Fundamental.
Parecer CNE/CEB n° 5/2007, de 1° de fevereiro de 2007 (reexaminado pelo Parecer CNE/CEB n° 7/2007): Consulta com base nas Leis n° 11.114/2005 e n° 11.274/2006, que tratam do Ensino Fundamental de nove anos e da matrícula obrigatória de crianças de seis anos no Ensino Fundamental.
Parecer CNE/CEB n° 7/2007, de 19 de abril de 2007: Reexame do Parecer CNE/CEB no 5/2007, que trata da consulta com base nas Leis no 11.114/2005 e n° 11.274/2006, que se referem ao Ensino Fundamental de nove anos e à matrícula obrigatória de crianças de seis anos no Ensino Fundamental.
Resolução N° 7, de 14 de dezembro de 2010, que fixa Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental de 9 anos, e estabelece a data limite de 31 de março como data de corte.



O processo de implementação do Ensino Fundamental de 9 anos começou em 1996, quando foi sinalizada a ideia de agregar as crianças de 6 anos já ao Ensino Fundamental, de forma a universalizar cada vez mais o ensino no país. De acordo com a Lei 10. 172, de 9 de janeiro de 2001, que aprovou o Plano Nacional de Educação (PNE), a ampliação do Ensino Fundamental de oito para nove anos se tornou meta progressiva da educação nacional.

Em 2003 estava criada a versão preliminar do documento "Ensino Fundamental de 9 anos - Orientações Gerais", e em 2004 o documento final foi distribuído às entidades educacionais. De 2003 a 2006 foram realizados encontros nacionais, seminários e fóruns com as secretarias da educação para aprimoramento e estudo da viabilização do processo, quando em 2006 lançaram o documento "Ensino Fundamental de 9 anos: orientações pedagógicas para a inclusão da criança de 6 anos". A Lei 11.274, de 6 de fevereiro de 2006, especifica a matrícula de crianças de seis anos de idade no início do ano letivo da 1a. Série (antigo G6 ou antigo pré), e estabelece prazo de implantação do novo sistema até 2010. A Resolução n° 7, de 14 de dezembro de 2010, estabelece a data limite de 31 de março como data de corte.

Em algumas escolas a saída encontrada foi a criação de uma nova turma, uma espécie de G5+, com as crianças que não poderiam se matricular na nova 1a. série, com projetos adequados à idade deles. A realização de reuniões entre as escolas e os pais mostrou-se fundamental para esclarecer as dúvidas, dirimir as angústias e para apresentar as etapas necessárias para a implementação do novo projeto, que deveria ser trabalhado com os pais e principalmente com as crianças, para que pudessem compreender e participar da nova proposta. Pois a implementação de qualquer nova política deve ser processual, assim como a formação do conhecimento. 

O essencial é que essas questões possam ser discutidas exaustivamente com as escolas. Ouvir o que a escola tem a dizer sobre essa nova lei, como enxerga as repercussões pedagógicas e psicológicas para cada uma das crianças afetadas, ou seja, qual é a posição da escola do ponto de vista do educador. Acredito que essa etapa da informação deve ser coletiva, com todos os pais da escola, pois ela afeta os filhos e os amigos dos filhos também.

Um enfrentamento de ideias, como esse dos pais com o MEC, é normal e legítimo em um sistema democrático, a partir do momento em que somos, como cidadãos, responsáveis pelas leis que criamos. As leis são criadas de maneira a dar uma resposta geral a um problema, mas a aplicação dessa lei geral deve necessariamente levar em conta a particularidade de cada caso, para podermos aperfeiçoa-la a partir das particularidades de sua aplicação. Portanto, nada mais normal e tranquilo querermos organizar uma discussão coletiva e democrática tomando a escola como parceiros nessa discussão. Eu quero participar desse processo, e não ser alijado em meu direito de denunciar os equívocos da lei e/ou de sua aplicação.


Algumas consequências

Para que todos entendam melhor a situação geral, usarei como exemplo a turma do Grupo 3, em que meu filho e outros 3 amigos deverão ser retidos, tendo que fazer novamente o G3. Irão passar provavelmente pelos mesmos conteúdos (o projeto do fundo do mar, o projeto agora eu era herói, etc.), enquanto seus coleguinhas e amigos seguirão para o G4 para novos desafios, para os quais eles foram preparados durante o ano inteiro. Acredito que a medida prejudicará o lado emocional, psicológico e pedagógico das crianças retidas, mas também trará seus efeitos em seus colegas que seguirão.

Um dos resultados possíveis desse processo, que me parece equivocado quando aplicado às crianças que já se encontram na escola, já en-turmadas, ou seja, já pertencentes a uma turma, de onde se reconhecem e reconhecem o outro, poderá ser o desinteresse e desinvestimento das crianças retidas quanto às coisas da escola. No processo de aprendizagem, terão que “frear” seu desenvolvimento pedagógico, suas conquistas e descobertas, suas curiosidades e elucubrações, suas construções do mundo, muitas delas incentivadas até agora pela própria escola. No processo de socialização, ter que integrar uma “turma dos pequenos” pode produzir uma inibição social nas crianças, retraimento, isolamento. Já atendi muitas crianças que passaram a se recusar a ir pra escola porque tinham perdido os amigos, ou porque não tinham amigos na classe, crianças que choravam desesperadamente porque não queriam ir mais à escola. Devemos cuidar para que a escola não se torne um elemento hostil e ansiogênico para a criança, um lugar de desconforto, sofrimento, angústia, vergonha, evitação, se quisermos que o desenvolvimento cognitivo, social e emocional das crianças seja alcançado.

Para as crianças que iriam começar a ler no próximo ano, estas que foram preparadas durante todo o ano de 2011 através dos projetos multi-idade, estas que aguardam ansiosamente por um novo desafio, estas que não evoluirão, a perda, em diversos aspectos, pode vir a ser imensa, tanto em termos pedagógicos quanto em termos emocionais e psicológicos.

Especificamente no caso de meu filho temos uma agravante que merece não ser menosprezada: seu irmão está para nascer! E como todo mundo sabe – científica ou intuitivamente – o nascimento de um bebê provoca sentimentos confusos nos irmãos mais velhos. Entre a hostilidade e a alegria, entre o ciúme e o entusiasmo, há sempre uma regressão que é esperada. As crianças voltam a fazer xixi na cama, pedem a chupeta que haviam largado muito tempo antes, querem ser nenês novamente para terem a atenção dos pais voltada pra eles, assim como o nenê tem.

Tenho falado muito com meu filho que ele é grande, que ele não chupa mais chupeta, que ele não usa mais fralda, que ele não é mais bebê, e diariamente ele tenta, de uma maneira ou de outra, crescer.

Uma medida como essa, em um momento como esse, pode trazer consequências negativas ao processo de desenvolvimento cognitivo, psicológico e social dele. E comecei a pensar em tantas outras crianças que por um motivo ou outro também sofreriam prejuízos inaceitáveis, em contradição, sobretudo, com os princípios educacionais, filosóficos, ideológicos e políticos da própria lei do MEC, princípios valiosos que não podemos desconsiderar.

Enfim, tentei elencar abaixo alguns argumentos de diferentes recortes, para que possamos iniciar uma discussão a respeito de uma aplicação não prejudicial da nova lei.


Alguns pontos

1) Eu – e acredito que muitos de nós – não estou contra a lei do MEC. Acho que ela é benéfica para o que ela se pretende, desde que saibamos lê-la. Eu sou contra uma aplicação sumária da lei, principalmente nos casos em que constatemos que o prejuízo será maior que o benefício, ou quando a velocidade de sua aplicação acabe atropelando os atores envolvidos, ou seja, as crianças.

2) Essa lei objetiva principalmente a rede PÚBLICA de ensino, onde, não sendo obrigatória a pré-escola, muitas crianças entram na escola somente com 7 anos; ou seja, para forçar a ENTRADA das crianças de 6 anos.

3) Por isso, essa lei incide principalmente sobre as crianças que AINDA NÃO ENTRARAM na escola, visando a prevenção, atacando a base, em um incentivo para adiantar a entrada da criança no universo escolar, como uma maneira de incluir paulatinamente os anos da pré-escola na lógica pública a fim de tentar prevenir alguns problemas crônicos na Educação investindo na base.

Ora, nossos filhos já estão na escola. Estão adiantados. A lei visa corrigir as lacunas dos que estão atrasados, prevenindo vícios inerentes à entrada tardia, e não afetar os adiantados, atrasando-os! A lógica do aluno adiantado sempre existiu, e as escolas sempre puderam discutir com os pais se seus filhos deveriam, poderiam ou se beneficiariam em ser adiantados ou retidos. O aluno adiantado nunca foi um problema para as escolas, muito pelo contrário: o problema das escolas é o aluno atrasado, e esses sim, aos borbotões, principalmente na rede pública. Ouvi no rádio hoje que 40% das crianças brasileiras de 1a. a 3a. séries não estão alfabetizadas! Esse é o alvo da lei!

4) A retenção é obrigatória, pelo MEC, somente na entrada da nova 1a. série, ou seja, quando a criança completar 6 anos.  Desse modo, ela não se aplica à Educação Infantil. (A Lei 9.394, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB, de 1996, proíbe a reprovação/retenção na Educação Infantil.) Ainda assim, a escola deve, junto com os pais, analisar quando cada criança da pré-escola será retida, avaliando, no caso a caso, as múltiplas implicações, levando em conta suas diferenças, para avaliar e programar essa retenção ao longo desse período.

Se esses alunos não forem retidos agora, quando serão? No ingresso do Ensino Fundamental? No momento da troca de escola para o Ensino Médio?

5) Como a escola pode produzir novos projetos para que as crianças entendam a nova realidade?

6) Os pais gostariam que as escolas se solidarizassem com eles. Seria importante que as escolas realizassem uma análise técnica sobre as consequências educacionais da medida com cada criança. Ou seja, que apresentasse a questão do ponto de vista técnico (que leva em conta o caso a caso), e não do ponto de vista normativo (a simples observância da lei geral, igual para todos, desconsiderando a particularidade e as consequências para cada criança).

7) Meu filho tem 3 anos e meio. Não está na idade para se alfabetizar. Mas ele começou a demonstrar interesse pelas letras, passa o dedo em cima das frases dos seus livros infantis, fingindo que está lendo. Hoje ele identifica as letras usando os nomes de seus colegas de turma: já sabe qual é o T de Tomás, qual é o G de Gugu, qual é o I de Iara, qual é o J de João. Ele está reconhecendo as letras porque o método de aprendizagem que ele desenvolveu junto com a escola envolve seus vínculos afetivos, suas referências, seus colegas da classe. Uma retenção pode causar um curto circuito em seu interesse pelo G de Gugu, pelo I de Iara, pelo J de João.

8) Como psicólogo clínico e psicanalista de crianças, já atendi centenas de crianças com problemas de aprendizagem, com dificuldades de alfabetização, leitura e escrita, letras e números. Muitas vezes as crianças que emperram em operações lógicas como juntar letras e números, ou separar letras e números, presentes nas operações de adição e multiplicação, ou subtração e divisão, assim como são necessárias para a aprendizagem da leitura e da escrita, denunciam a situação familiar e emocional em que estão vivendo, e que influenciam e decidem pelo sucesso ou fracasso de um processo de desenvolvimento pedagógico. Por exemplo, crianças cujos pais estão se separando, ou se separaram, quanto mais descuidada é essa separação maiores as chances das crianças apresentarem sintomas diversos, que podem ir desde a agressividade, isolamento, depressão, aos problemas de aprendizagem que envolvem o diminuir e o dividir, uma questão que a criança evita ter que resolver.

9) Tomás irá ganhar um irmãozinho, como já disse. Esse não é, especificamente no caso dele, um momento favorável para uma mudança de turma. Por que? Porque ele vai sentir uma perda fundamental com o nascimento desse irmãozinho: a perda da exclusividade de ser o filho único dos pais, a perda de uma parte do amor, dedicação e atenção dos pais. Ele vai ter que lidar com essa situação de uma maneira ou de outra. Mas a depender das armas que ele tiver no momento do nascimento ele vai conseguir se defender de uma maneira mais estruturada ou mais descompensada.

Acredito que a perda da turma para Tomás o deixará fragilizado para sustentar e elaborar o nascimento do irmão que virá logo em seguida. Duas grandes perdas, seguidas, isso é complicado para qualquer criança elaborar.

10) Existem muitas situação críticas que influenciam e marcam a vida escolar de uma criança, e devemos pensar, preventivamente, nas situações críticas que outras famílias podem estar vivendo, o que contra-indicaria a retenção neste momento. Pensando em prevenção, penso que a escola deve fazer um diagnóstico dos alunos diretamente afetados, situação da família de seus alunos, bem como um diagnóstico do momento escolar de cada criança, do processo de aprendizagem e socialização de cada criança, de sua evolução, de suas dificuldades particulares, do prognóstico de sua retenção, com uma programação de suas ações.

Para cada criança nascida depois de 31 de março, levando em conta seu momento familiar, de aprendizagem e socialização escolares, quais as consequências de uma retenção?

11) Se a lei é geral, devemos lembrar que sua aplicação deve sempre levar em conta o caso a caso. Cada pai, assim como cada uma das professoras das crianças, psicólogas da escola, tem o direito e o dever de pensar em cada uma das crianças, e na incidência da lei sobre cada uma separadamente.

Algumas situações podem ser críticas para as crianças, e devemos estar atentos a elas, como por exemplo:


- Há outros casos de nascimento de irmãos?
- Há casos de pais que se separaram ou estão se separando?
- Há casos de morte na família?
- Há casos de mudança de casa, bairro, do grupo de amizades e referências?
- Há casos de alunos “a serem retidos” que estão apresentando atualmente dificuldades na aprendizagem?
- Há casos de de alunos com dificuldades de socialização?


Uma retenção somada a alguma dessas situações pode se mostrar uma catástrofe psicológica anunciada, que justifique que a criança não deva ser retida agora para evitar um transtorno psicológico futuro.

Penso que qualquer política pública para a população infanto-juvenil visa sempre apostar na prevenção, e não somente apostar em medidas de atenção à crise. Consonante com este princípio, previnamos então.




[1] Citação presente no documento de implantação das novas regras do MEC.

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