Morando
há um ano e meio em Salvador, ainda não havia participado de nenhuma festa
popular baiana. Geralmente eu fujo desse tipo de muvuca, não sei se por conta
da idade ou da chatice (ou ambos), mas o fato é que uma aglomeração de gente se
empurrando atrás de um trio elétrico com o som altíssimo, normalmente de
péssima qualidade, não faz minha cabeça.
Do
carnaval de 2011 colhi os ecos, e me decepcionei: como estampou um dos jornais
locais, a maior festa popular do mundo se tornou “o carnaval do apartheid”.
Negros e pobres de um lado, brancos da classe média de outro, separados por uma
corda! Nada mais selvagem, a imagem impressiona meu olhar estrangeiro, tal a
falta de necessidade de cinismo ou hipocrisia, ou de uma domesticação sutil dos
corpos, ou então de uma vigilância panóptica básica, tão comum nos países
“civilizados”. Não, nada tão sofisticado. Vivemos a barbárie a céu aberto, e
portanto não há necessidade no Brasil de mecanismos de controle sutis ou de
manipulação ideológica. Aqui, à segregação basta uma corda, e eis que a turba
avança obediente, cada qual em seu lugar no espaço público – alguns menos
públicos que outros –, na maior festa “popular” do planeta.
Mas me
disseram que a festa do Bonfim era a mais importante de todas, que ainda trazia
forte sua raiz, que ainda não havia sido vendida aos grandes trios elétricos. No
carnaval já não há batuque, só axé; até o pagode, ou o que aqui se chama
pagode, é axé! É tudo axé! A esperança era a festa do Bonfim, pensava. Deveria
ser diferente.
Cheguei
cedo, e olhei vários carros – trios – passarem. Depois de muito ver, achei
finalmente dois batuques tipicamente baianos, excelentes: Filhos de Gandhi e
Ilêayê. E os outros? Para a minha surpresa, um monte de carros de partidos
políticos, sindicatos, fazendo ou campanha ou protesto, já não dava pra
entender direito a diferença, dada a altura da música e dos microfones dos
militantes, um abafando o som do outro! A festa do Senhor do Bonfim – pasmem! –
virou uma grande carreata política!
Depois
de um tempo vendo aquele show de horror decidimos ir atrás do Filhos de Gandhi,
que estava bem lá na frente. No caminho, o pessoal me deu uma guia azul e
branca, cor da festa, cor também dos Filhos de Gandhi; como eu havia gostado do
som, poderia usar a guia.
De
guia azul e branca no pescoço, latinha de cerveja na mão, fomos pulando até
chegar. Debalde, música para meus ouvidos! O ritmo hipnótico dos refrões, o batuque
vigoroso, fomos acompanhando o melhor da festa, quando senti uma aglomeração um
pouco maior. Parecia que tinham aberto uma porta, e um monte de gente tinha
entrado; de repente me vi espremido entre várias pessoas, aquele
empurra-empurra típico do show do Motorhead, e de repente passou.
Em
um lapso de segundo, percebi o que tinha acontecido! Comecei a verificar meus
bolsos: celular, chave... tinham levado minha carteira! Como assim? Quem? Como?
Olhei pra frente, e vi um monte de gente espremida, indo de um lado pro outro,
pulando. Poderia ser qualquer um deles, ou poderia ser alguém mais à frente...
como saber? Olhei pra baixo e conferi meus bolsos de novo: celular, chave... não
podia acreditar, minha carteira havia sumido mesmo!
Quase
resignado, comecei a pensar em todos os documentos que ia ter que tirar, um por
um... até que resolvi olhar novamente para a turba pulando à minha frente, indo
de um lado pro outro, e percebi o que meu olhar desatento não havia percebido
antes: esses caras bem à minha frente, esse mais fortes, eram os seguranças! Alguém deve ter tirado
minha carteira do meu bolso e dado pra outro companheiro; ele deveria estar algumas
fileiras de gente à frente, longe de mim, pra não dar bandeira e pra ficar protegido
pela escolta de qualquer tentativa de reação. Tentei olhar à frente da escolta,
e fui espremido de novo, empurrado por todos os lados ao mesmo tempo. No movimento
de retorno da massa ao centro da rua olhei por cima dos ombros dos seguranças,
e vi um cara olhando pra baixo, 3 ou 4 fileiras de gente à minha frente.
Poderia ser ele, conferindo dentro da carteira. Ou poderia não ser, como saber?
Fui escorregando entre os corpos que me empurravam e consegui chegar no cara, e
mesmo arriscando não ser ele, gritei: “Pega o dinheiro, me dá os documentos!”
No meio daquele som alto do trio, o cara até chegou a olhar pra mim mas se
virou novamente pra frente, fingindo não ser com ele. Levei outra espremida da
turba de segurança, mas consegui chegar perto de novo do cara e arrisquei
novamente: “Pega o dinheiro, me dá os documentos!” O cara olhou pra mim e finalmente
respondeu: “Joguei no chão, tá ali atrás no chão!”
Não
acreditei, achei o cara! Olhei pra baixo e no meio das pernas que pulavam vi
minha carteira! Peguei-a rapidamente e fui pra calçada, aliviado. Só consegui olhar
dentro da carteira algum tempo depois, e constatei que o cara tinha realmente levado
só o dinheiro.
Fiquei
impressionado com o modus operandi desses bandidos, e percebi várias coisas: se
você já está espremido no meio da multidão, é claro que não vai estranhar se
ficar mais espremido. E se você não perceber exatamente na hora, a massa
indiferenciada vira uma camuflagem perfeita que permite aos ladrões ficarem
invisíveis rapidamente. Os seguranças não impediram acintosamente minha
aproximação do líder porque eles fingem que não se conhecem. Quem pega a
carteira não fica com ela, passa pra outro que normalmente está mais longe da
vítima.
Percebi
outra coisa também: o Bonfim não é festa religiosa, é carreata política. E sabe
que nem bravo eu fiquei? Pelo menos encontrei meus documentos. Pior foi o Popó,
ex-lutador de boxe que virou deputado, que também foi assaltado nesse Bonfim e percebeu
tarde demais! Terá sido a guia? Como diz uma amiga, em Salvador é melhor não
duvidar de nada!
E
quando eu contei isso tudo pra outra amiga baiana, ela concordou com meu
pessimismo em relação à descaracterização das festas populares na Bahia, mas
emendou, como a outra antes dela já havia feito com relação ao carnaval, que a
festa do Bonfim realmente se perdeu, mas que a festa boa mesmo é a festa de 2 de
fevereiro, Iemanjá. Nessa ela me assegurou que não tem nem axé nem carreata
política. Já arrastão...
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