26/01/2012

Música e Percussão na clínica da psicose


 

 

Ultimamente temos observado um grande crescimento e popularização dos limites e possibilidades de utilização da música dentro do “universo psi”. Desde que a expressão artística da loucura passou a ser vista como linguagem, e não como distúrbio da linguagem; como tentativa de conexão ao Outro, e não como desconexão, as artes plásticas e a música têm sido utilizadas como uma forma de tratamento do sofrimento mental, expandindo o repertório de significantes que os sujeitos podem ter à sua disposição para dar sentido ao mundo e a eles mesmos.


No caso da expressão estética da loucura, temos o trabalho precursor de Nise da Silveira e o Museu de Imagens do Inconsciente. Quando falamos em intervenção clínica, ressaltamos o trabalho também inovador de Joseph Berke e Mary Barnes, médico e paciente, retratado no livro “Viagem através da loucura”, de 1977[1]. Com uma abordagem sensível aos rompantes artísticos de sua paciente esquizofrênica, o jovem médico nos convida a um olhar mais próximo da loucura e de sua manifestação. Ele passa a utilizar a arte no tratamento da esquizofrenia, na busca de efeitos terapêuticos, procurando instrumentalizar suas intervenções. Ou seja, não somente para aliviar os momentos de surto, mas também como uma forma de tratá-los.


A música passou a integrar, principalmente nos últimos 10 anos, a grande maioria das instituições de saúde mental, seja como uma atividade pontual, em oficinas de curto período, ou como uma atividade regular, compondo o quadro de atividades clínicas das instituições, junto com os psicólogos, psiquiatras, terapeutas ocupacionais. Também nos hospitais, é cada vez mais freqüente o uso de técnicas artísticas e musicais, para auxiliar no tratamento e na recuperação dos doentes (como por exemplo os “Doutores da Alegria”).


Apesar de sua popularização recente, o uso da música com finalidades curativas não é novo. Desde o início dos tempos, a música ocupa um lugar de destaque no mundo dos homens, nas mais variadas culturas. Seja pelo canto, na entonação de canções ou orações, onde o sentido das palavras entoadas direciona a cura, embaladas pela melodia; seja pela repetição de palavras ou frases curtas, de maneira constante, como um mantra, a ligação da música aos processos curativos é muito antiga. A origem dos mantras encontra-se em escritos que há milhares de anos formam a base filosófica dos pensamentos budista e hinduísta. Hoje sabemos que sua repetição ritmada, aliada a técnicas de respiração específicas, altera a frequência ondulatória cerebral e induz a um estado de transe considerado curativo.[2]


Além da voz, os instrumentos musicais também são utilizados com finalidades curativas há tempos. Dentre os instrumentos considerados curativos ou sagrados, pelos mais diferentes povos, destacam-se os instrumentos de sopro e de percussão. Entre os primeiros, temos por exemplo a flauta sagrada dos índios do Alto Xingu, o Jacuí; ou o Didgeridoo, dos povos aborígenes australianos. Na percussão, especialmente presente nas mais variadas culturas, temos o Djembê, um dos mais importantes tambores africanos; na Índia encontramos as Tablas, cujo tocador, depois de muitos anos como mestre e professor, recebe o título de Ustad, cujo sentido é de um mestre espiritual, passando a ocupar um lugar de destaque na sociedade indiana.

As atividades musicais oferecidas nas instituições de saúde mental normalmente trabalham com a voz, utilizando a letra das canções junto à melodia, buscando seu sentido, podendo integrar o corpo dançando, pulando, encenando; ou com instrumentos como a flauta, o violão, a percussão.  Entretanto, o que se observa muitas vezes é uma aplicação intuitiva da música neste tipo de trabalho. Faz-se oficina de música porque tocar ou cantar “faz bem”.

Na grande maioria das vezes, o profissional responsável pelas atividades musicais é um músico que não entende dos processos psíquicos envolvidos na doença mental, ou um psicólogo que não entende de música, e das possibilidades que a música possibilita. Normalmente, a música é utilizada somente como uma atividade recreativa, de maneira intuitiva, e há que se dizer que, muitas vezes, isso é suficiente. Mas propomo-nos aqui a investigar ao menos um dos caminhos possíveis, de maneira que possamos extrair algum saber para além da intuição.

Por conta das inúmeras formas e possibilidades que a arte possibilita, e que agora também o tratamento “artístico” da doença mental tem possibilitado, levanta-se esta primeira questão: haveria diferença entre um psicólogo “fazendo arte” em uma instituição de saúde mental, como uma proposta de tratamento, e um artista “fazendo arte” dentro da mesma instituição? Ou, para que serve um psicólogo fazendo arte, se eu posso contratar um artista, muito mais “competente” na hora de propor uma atividade artística?

Esta questão foi levantada por Renato Di Renzo, coordenador do Projeto Tam Tam, um projeto precursor de trabalho institucional para doentes mentais criado em Santos, no final dos anos 80, quando o Anchieta foi interditado. Di Renzo foi convidado para trabalhar com teatro e arte na Casa de Saúde Anchieta, hospital psiquiátrico que sofreu intervenção municipal em 1989, por denúncias de maus tratos e morte de internos. Foi nesse momento que surgiu o Projeto Tam Tam, que mais tarde viria a se tornar referência da luta antimanicomial. O Projeto Tam Tam funcionava como um hospital-dia, junto com uma oficina abrigada de trabalho, com pintura de camisetas, quadros, cadernos e outros objetos, vendidos como uma das formas mantenedoras do Projeto. Além da oficina, o Projeto tinha um programa de rádio e um bar, nos quais trabalhavam os próprios usuários. A idéia do Projeto era não ter psicólogos, psiquiatras ou enfermeiros em seu corpo de terapeutas, mas artistas e educadores, por acreditar em uma forma de tratamento que evita deixar o paciente em uma posição paciente, em um lugar de objeto, acreditando que pessoas não-cientistas poderiam lidar com os usuários da instituição de uma maneira direta, não atravessada pela teoria. Como pessoas, e não como rótulos científicos.

Como veremos, o processo trilhado no tratamento da doença mental, resultando na luta antimanicomial e em outras formas institucionais de tratamento, compartilham dessa perspectiva humanizadora, de resgate do sujeito.

Expandindo os Limites 


Nos anos 60, o tratamento da doença mental buscava outros caminhos que pudessem orientar tanto a clínica psiquiátrica quanto a clínica psicanalítica. Na França, um movimento generalizado toma de assalto as instituições. “Abaixo a estrutura!”, os estudantes saem às ruas exigindo reformas nas instituições educacionais. “É proibido proibir”, diziam primeiro nas Universidades. Mas logo a cena começou a se espalhar pelos sindicatos, e uma paralização geral tomou de assalto as instituições parisienses em maio de 68, com confrontos armados e prisões, em meio a palavras de ordem dos estudantes contra toda e qualquer ordem.

Esse movimento serviu como estopim para que um novo paradigma institucional tomasse forma, na tentativa de alargar o conceito de estrutura e de superá-lo, vivido à época como aprisionante e autoritário. Ele atinge diferentes setores da sociedade, e aparece de formas diversas. Nas universidades, “Abaixo o poder dos Mestres!, os alunos querem ser ouvidos!”. Nas instituições psiquiátricas, “Abaixo o poder dos Médicos!”, os loucos querem ser ouvidos!”. Mas era ao estruturalismo e a suas deformações autoritárias que o ataque era feito, em todas as esferas do poder.[3]  

Um movimento anti-manicomial começa então a ser esboçado por alguns psiquiatras, e outras formas de tratamento dos transtornos mentais começam a ser elaboradas, impulsionadas por um movimento conhecido como “anti-psiquiatria”. Assim apelidado por Cooper, este foi um movimento conduzido por alguns médicos, dentre eles Basaglia, Laing e o próprio Cooper, como uma crítica às práticas psiquiátricas desumanizantes conduzidas à época.

Esse movimento propõe uma relação entre a violência do hospital psiquiátrico, que trata o paciente como um objeto ao seu serviço, alienado de seu desejo, e a violência global dos nossos sistemas sociais. Em outras palavras, a anti-psiquiatria pregava que a maioria dos loucos não estavam internados nos hospitais psiquiátricos para se tratar, mas como uma forma pura e simples de exclusão do diferente, exclusão social, que rejeita, restringe, inibe e prende também os pobres e os negros, além dos loucos.

Basaglia assumiu o controle do Hospital Psiquiátrico de Trieste, na Itália, em 1971, e iniciou um processo de desativação do manicômio com a gradual reinserção do internado em seu núcleo social. Diz ele:

Se nós começarmos pelo surgimento da psiquiatria – ela nasceu como um elemento de libertação do homem – devemos recordar que Pinel libertou os loucos das prisões, mas infelizmente, depois de tê-los libertado, colocou-os em outra prisão que se chama manicômio.[4]


A contribuição da anti-psiquiatria foi fundamental para o questionamento da esquizofrenia como um fato bioquímico, neurofisiológico, ou mesmo psicológico. Dessa forma, ajudou a redirecionar o foco do doente, seu organismo e psiquê, para além dele, entendendo-o como um ser de relação, que depende das trocas com a sociedade e a cultura para se constituir como sujeito, e também para poder tratar-se.

Ronald Laing também atenta para o fato social na compreensão da psicose, direcionando sua prática “de uma perspectiva clínica para uma perspectiva social e fenomenológica”[5]. Sob esse ponto de vista, entende a psicose como um distúrbio da relação que o indivíduo estabelece com o mundo, um distúrbio na comunicação do sujeito com a realidade social. Entendendo o ser humano como um “ser-no-mundo”, um ser de relação, busca como forma de tratamento a sustentação da relação do sujeito com o mundo, com o outro, o oposto da prática corrente até então de contenção, internação, separação do mundo, clausura.

Na França, Lacan alargava a compreensão das psicoses, reavivando a cena psicanalítica sobre bases que revisavam a psiquiatria clássica, passando pela filosofia e pela linguística. Seu seminário sobre as psicoses, de 1955[6], serviu de caução para uma série de iniciativas clínicas e institucionais, abrindo um terreno até então inédito para o tratamento das psicoses.

Na esteira dos ensinamentos de Lacan, Maud Mannoni e Robert Lefort propõe uma nova maneira de tratar a psicose e o autismo, onde a análise tradicional mostrava-se insuficiente. Em 1969 fundam, com alguns educadores, a Escola Experimental de Bonneuil, e sugerem como forma possível de tratamento a possibilidade de uma prática institucional atravessada pela psicanálise. Salienta Mannoni:

O paradoxo de Bonneuil é que não se pratica aí a psicanálise (isso é concomitante à recusa da instituição), mas tudo o que aí se faz baseia-se rigorosamente na psicanálise, à qual não se recorre como técnica de ajustamento mas, outrossim, como subversão de um saber e de uma práxis.[7]


A transferência, uma das condições salientadas por Freud para haver análise, não é em dirigida a um analista, mas aos praticantes vários que compõe a equipe, em uma prática conhecida hoje como “prática entre vários”. Mesmo que em Bonneuil não se faça análise propriamente dita, o recorte psicanalítico serve de eixo teórico para possibilitar as práticas e intervenções, direcionar a escuta e o olhar sobre o sujeito, sujeito do inconsciente.

Mannoni propõe uma forma de tratamento que, atravessada pela reflexão que a orientação lacaniana promove, dirige seu olhar para a relação que o indivíduo estabelece com o outro e com o Outro, tanto na etiologia como no tratamento da doença mental, e nas possibilidades infinitas que essa relação, instaurando e ofertando lugares, pode provocar na busca de sentido.

Essa perspectiva de “olhar para o sujeito” conforma uma nova maneira de pensar a doença mental e seu tratamento, e busca tirar o paciente de uma posição de objeto, e conseqüentemente, o médico/psicólogo da posição de mestria. Diz Mannoni:

Se em medicina o ensino pode servir para o bem estar do paciente, sabe-se bem que tal não é o caso em psiquiatria, na qual o paciente serve para a reprodução de um saber de mestre cujo único efeito é de alienar um pouco mais o sujeito.[8]

A Prática Institucional


A mudança no tratamento da psicose busca um retorno ao sujeito e à sua tentativa de construção singular. Deste modo, procura tirar o psicótico da posição de “cura analítica”, trocando a idéia de cura pela possibilidade de “oferta significante”[9]. Sob  um recorte específico, entende o homem como um ser de relação, um “ser-no-mundo”. Antes que mudar uma estrutura – na maioria dos casos, isso não é mais possível, pois a estruturação subjetiva obedece a um tempo lógico de constituição – há uma oferta dos elementos do mundo, elementos significantes, elementos da linguagem. A instituição funciona, então, como um meio que auxilia o sujeito a utilizar o discurso social compartilhado para se estruturar.

O trabalho em instituição seria então uma forma de possibilitar uma circulação do psicótico pelo campo da linguagem, facilitando seu acesso a esse campo, procurando fazer com que ele ocupe esse campo, e não que seja “ocupado por ele”[10]. Assim, entende a própria montagem institucional como uma rede discursiva. Nesse sentido, a própria construção dessa montagem e a circulação por ela já seriam o tratamento, como mostra Kupfer[11].

O trabalho institucional pode ser dividido em várias oficinas, ou grupos de atividades, cada um com uma proposta diferente, como por exemplo oficina de música, de escolarização, pintura, marcenaria, jogos. Cada oficina tem uma especificidade, tem uma linguagem característica, como a música do “Batuque”[12], lidando com os instrumentos de percussão, trabalhando os ritmos e os sons, que podem ser do samba, que podem ser do carnaval, mas também da capoeira, podendo assumir outros contornos.

Mesmo tendo cada oficina uma característica e uma linguagem que a diferencia das outras, todas devem ter um fio condutor comum, que as aproxima, e que permite que seu trabalho seja compreendido em uma rede significante maior, institucional. Este fio condutor é a escuta do sujeito.

Jardim[13] sugere que esse trabalho de alternância nas diferentes atividades possibilita que conceitos psicanalíticos fundamentais como a alienação e a separação possam ser trabalhados em uma perspectiva clínica. Através dessa alternância, uma intervenção pode ser feita no grupo de música, e ao chegar na oficina de jogo, o sujeito pode levar essa intervenção de algum modo, como uma ecolalia ou uma garatuja. Se o profissional estiver atento à escuta do sujeito, aquela garatuja, que pode muito bem ser entendida como um rabisco sem sentido, também pode dizer algo do sujeito, um rabisco que pode virar uma letra, e que pode estar sendo usada pelo sujeito para representar-se de alguma forma.

É nesse contexto que um trabalho com música pode se desenvolver como uma atividade dentro de outras da instituição, com sua linguagem especial e singular, constituída de variados elementos significantes, contendo variadas expressões da cultura. E mesmo singular, comunicar-se com as outras numa teia discursiva institucional.


Ritmo e melodia

A música é uma das mais importantes formas de expressão e representação do homem. Por conter propriedades comuns à fala, como o ritmo, a entonação, a pausa, é um falar sem palavras. É somente graças a essas propriedades do som que a estrutura linguística pode se organizar, possibilitando por exemplo às palavras se agruparem sem se misturarem, compondo um sentido.

Segundo Wisnik, a onda sonora é formada de um sinal que se apresenta e se ausenta, registrados pelo tímpano como uma série de compressões e descompressões. Sem este lapso, o som não pode durar nem começar: “Não há som sem pausa. O tímpano auditivo entraria em espasmo” [14].

Assim como a existência do silêncio é a condição para a existência do som, numa relação dialética onde o sentido de um só aparece na relação com o outro, a pausa também é necessária na linguagem, para que esta possa ter um sentido.

A pausa opera na fala, dentre outras maneiras, através da vírgula e do ponto final, funcionando como ordenadores da cadeia discursiva e possibilitando a emergência de um sentido para o que está sendo dito. Pois o sentido de uma frase só pode ser entendido retroativamente, na cadeia semântica, e esse retorno é operado pelo ponto final, na articulação entre uma sincronia e uma diacronia, como mostra Jerusalinsky[15]. Só quando colocamos o ponto final, é que podemos, retroativamente, voltar ao início da frase para dar-lhe um sentido. Segundo Kupfer,

a estrutura psicótica pode ser comparada a de uma frase melódica sem repouso na tônica, o que equivale a uma frase sem ponto final. A falta de ponto final, de uma pausa no enunciado, de um momento de conclusão, impede a emergência de sentido. (...) falta à criança psicótica o equivalente a esse ponto final.[16]


Assim, uma leitura possível da psicose seria que a estruturação subjetiva do sujeito funcionaria como uma frase sem ponto final, com uma equivalência entre todos os significantes. Se todos os significantes a dispor do psicótico tem o mesmo valor, ele acaba vivendo uma “errância”, como explica Calligaris[17], pois as significações do que fala são sempre significações em si mesmas, não se remetem a um ordenador central, “a uma significação que distribui as significações do mundo”. Segundo ele, uma intervenção externa poderia dar um rumo à rede significante do sujeito, ponto a ponto, de maneira ortopédica, para servir como ponto de basta em sua errância.

Nossa hipótese é que esse ponto de basta pode ser uma palavra, uma pontuação, mas também o tocar um instrumento, em sua relação com os outros instrumentos, cada um referindo-se a um ordenador central, o ritmo, implícito em todos os toques. Assim, mesmo tendo cada instrumento o seu toque específico, um diferente do outro, todos devem obedecer ao mesmo ritmo. O ritmo, nesse sentido, poderia vir a funcionar  como um ordenador do discurso, aquele que cadencia as compressões e descompressões, o som e a pausa.

A significação fálica, ou standard, escaparia ao psicótico pela falta desse ordenador central, um Nome-do-Pai que organizasse seu discurso no laço com o Outro. Nossa hipótese é que uma atividade musical poderia proporcionar uma ordenação ortopédica, através do ritmo, dos tempos e contratempos, na interação dos instrumentos, nas conversas rítmicas, como uma forma de organização da qual o psicótico poderia se utilizar para se organizar e regular sua relação ao Outro.

O tempo de constituição da subjetividade, alguns analistas situam-no até a estruturação edípica. Passado este tempo, o tratamento da psicose buscaria proporcionar ao sujeito condições para que ele possa constituir da melhor maneira possível uma suplência ao Nome-do-Pai, pluralizando-o em pontos de costura ao Outro ortopédicos, através dos quais poderia representar-se e representar o mundo. A proposta é possibilitar ao sujeito circular em um discurso institucional, na medida em que este carrega os mesmos códigos do discurso social, podendo de algum modo estruturar-se em torno dessa relação com um Outro menos ameaçador, regrado, barrado.


O “Batuque”

O Grupo do Batuque nasceu meio por acaso, em uma oficina abrigada de trabalho para jovens e adultos com problemas mentais. Começou com o horário chamado Horário do Descanso, um intervalo entre o almoço e as atividades da tarde, horário em que eles costumavam ficar conversando, descansando, jogando dominó, ou outro jogo qualquer. No início eu participava deste horário de descanso ajudando mais como recreacionista, fazendo o que eles estavam acostumados a fazer.

Um dia, eu levei um violão, em outro um pandeiro, depois um atabaque, e pouco a pouco começamos a criar um espaço conjunto para tocar. Aquilo que primeiramente existia como um espaço onde eu tocava e eles me ouviam, atentos, foi transformando-se, por exigência das palmas e do ritmo ansioso batucado nas mesas, num espaço onde todos pudessem se expressar tocando. A partir daí comecei a levar todos os meus instrumentos, até que a direção resolveu comprar instrumentos de percussão para a instituição e devolver os meus.

O Grupo do Batuque começa, nesse primeiro momento, como uma divisão do Horário de Desacanso: quem quisesse poderia tocar. Metade quis. A outra metade foi aderindo paulatinamente, até que todos participassem, e o pequeno momento de descanso se tornasse uma oficina estruturada, 3 vezes por semana.

A escolha pela percussão não se deve somente pelo fato de ser mais fácil a execução, mas principalmente pela disponibilidade instrumental que propicia, lembrando o fato de que estamos lidando com um grupo. Os instrumentos percussivos possibilitam uma interação peculiar entre os componentes de um grupo, na medida em que todos podem – e devem – tocar juntos, ao mesmo tempo, mas cada um com um toque diferente, respeitando seu instrumento e a especificidade do timbre e do toque, mais grave ou mais agudo, mais alto ou mais baixo, mais rápido ou mais lento, mais subdividido ou menos.

Assim, o Grupo do Batuque era composto por várias pessoas, cada uma com um instrumento, tocando um toque diferente, e mesmo assim, todos tocando juntos por causa de um elemento comum: o ritmo. Essa sempre foi a Lei maior, o significante central que espalhava as significações do que acontecia lá. Mesmo quando alguém tocava fora do ritmo, mantinha a todo o momento o seu fora-do-ritmo como uma referência constante e dialética com o ritmo imposto pelo grupo, numa referência constante e dialética do eu com o Outro.

Esta tensão dialética se mantinha sempre presente. Um dos objetivos era que mantivessem um ritmo comum, mas sem se misturar com o grupo, numa diferenciação sempre sugerida também entre os instrumentos e seus diferentes toques. Mantínhamos, por fim, o limite do grupo. Esse limite era dado pelo ritmo.

Assim, a aposta era que o ritmo, assim como todos os lugares imaginários que um grupo de batuque poderia evocar, pudessem desempenhar uma função organizadora para o sujeito. Deste modo, auxiliando como ordenador de um discurso específico, o discurso musical, mas apostando que algo dessa estrutura mínima pudesse ser deslocada.

Uma intervenção comum era introduzir um contratempo, um lapso entre um movimento e outro, entre um som e outro, diferenciando-os. Através de um contraponto como esse a aposta era que pudéssemos introduzir uma marca simbólica, uma função de falta, um buraco, que ajudaria o sujeito a estruturar-se através da diferenciação, fazendo-o produzir um som diferente do meu, com a aposta de que este som também o diferenciasse de mim.

O ritmo como “oferta significante” e a montagem institucional


Analogamente ao discurso – uma palavra dentro de uma frase, ou uma frase dentro de um parágrafo – o Batuque necessita, mesmo tendo seus elementos uma organização própria, do mesmo modo que qualquer outra atividade da instituição, do apoio de uma rede discursiva institucional, do discurso social, da frase inteira, para atender à expectativa de atividade estruturante.

Não nos referimos a outra coisa senão à importância da montagem institucional, à possibilidade de um significante permanecer na troca das atividades, e à possibilidade do sujeito poder levar com ele algo de uma oficina para outra, algo que produza uma marca que diga respeito a ele.

Assim, a estrutura rítmica em si é estruturante, mas somente em uma montagem institucional que assegure uma escuta a este algo que o sujeito possa levar de um lugar ao outro, e que possa ouvi-lo como um “algo”, e significá-lo, é que algum laço com o desejo pode ser construído do sujeito ao Outro, ajudando-o a estruturar-se. Ou seja, com o devido resgate quando aparece, mesmo que rapidamente, ainda sob a forma de uma estereotipia ou de um signo, e sua transformação (ao longo das oficinas) em uma marca que possa representar o sujeito.

Assim, há oferta de significantes nas várias atividades, e há sempre a aposta de que o sujeito possa se ligar a algum deles. A partir desta implicação, oriunda de uma atividade qualquer, pode-se trabalhar com esse significante em outras atividades, com o objetivo de introduzir esta marca em uma cadeia simbólica, e metaforizá-la nos outros lugares. Tentarmos construir uma cadeia entre as atividades visa possibilitar exatamente esse deslocamento. É esse deslocamento, finalmente, que faz aparecer o sujeito, ali onde sua marca faz laço.

Concluindo, tanto a palavra quanto o ritmo têm efeitos estruturantes para o sujeito, dadas as características especiais que compõem a ambos os discursos, como ordenação, pausa, ponto final, entonação, ambos constituindo-se em uma especial linguagem. Mesmo que tais ferramentas propiciem efeitos terapêuticos, elas dependem de um deslocamento, de uma circulação pelo discurso institucional, para poder propiciar o aparecimento do sujeito.

A importância da música vai além das particularidades dessa ferramenta: como qualquer outra atividade, ela deve se encaixar em uma teia maior, em uma rede discursiva institucional. Desse modo, independentemente do objeto específico com o qual cada oficina trabalha, seja ele a música ou as tintas, é fundamental a circulação dos pacientes entre as atividades, e a escuta do sujeito nesta circulação. Como salienta Lacan (1969-70), “o significante é aquilo que representa o sujeito para outro significante”, ou seja, o sujeito é este que surge exatamente no espaço entre dois significantes. Transportando para a teia institucional, a aposta é que o sujeito surja também entre as diferentes atividades ofertadas pela instituição, e que crie seus pontos de referência pelos quais possa circular de maneira mais pacífica pelo universo simbólico.  







[1] Berke, J. & Barnes, M. (1977). Viagem através da loucura. Rio de Janeiro, F. Alves.

[2] Mc Clellan, R. (1994). O Poder Terapêutico da Música. São Paulo, Siciliano.

[3] Le Goff, J.-P. (2002). Mai 68, l’héritage impossible. Paris, La Découverte.
[4] Basaglia, F. (1982). A psiquiatria alternativa. São Paulo, Ed. Brasil Debates, p.13.
[5] Laing, R. D. e Esterson, A. (1979). Sanidade, loucura e a família. Belo Horizonte, Interlivros, p.24.
[6] Lacan, J. (1955-56). Seminário 3: As Psicoses. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1988.
[7] Mannoni, M. (1977). Educação impossível. Rio de Janeiro, Zahar, p.16.
[8] Mannoni, M. (1988). A contribuição de Winnicot para um trajeto na psicanálise. In Estilos da ClínicaRevista sobre a Infância com Problemas. São Paulo, Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida – IPUSP, V.3,  nº 4, p.19.
[9] Kupfer, M.C.M. (1997). Educação Terapêutica: o que a psicanálise pode pedir à educação. In Estilos da Clínica – Revista sobre a Infância com Problemas. São Paulo, Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida – IPUSP, V.2,  nº 2.
[10] Luis Carlos Nogueira, comunicação pessoal.
[11] Kupfer, M.C.M. (2000). Educação para o futuro: psicanálise e educação. São Paulo, Escuta.

[12] Com relação ao “Grupo do Batuque”, ler mais à frente.
[13] Jardim, G. (1998). Um Lugar de Histórias. In Estilos da ClínicaRevista sobre a Infância com Problemas. São Paulo, Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida – IPUSP, V.3,  nº 5.

[14] Wisnik, J.M. (1989). O Som e o Sentido. São Paulo, Companhia das Letras, p.16.
[15] Jerusalinsky, A. (1997). A Escolarização de Criança Psicóticas. In Estilos da ClínicaRevista sobre a Infância com Problemas. São Paulo, Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida – IPUSP, V.2,  nº 2.
[16] Kupfer, M.C.M. (1996). A presença da psicanálise nos dispositivos institucionais de tratamento da psicose. In Estilos da Clínica – Revista sobre a Infância com Problemas. São Paulo, Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida – IPUSP, ano 1,  nº 1.
[17] Calligaris, C. (1989). Introdução a uma clínica diferencial das psicoses. Porto Alegre, Artes Médicas, p.12.

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