07/04/2012

O homem de 40


A sabedoria que se obtém aos 40...






Dizem que depois dos 30 o homem começa a sentir a degradação do corpo. Começa aparecendo uma barriguinha, no início pequena, quase imperceptível, e que contribui até mesmo para um certo charme. Nem incomoda. Traz até um certo status de maturidade, até mesmo símbolo de virilidade. O problema é que a barriguinha evolui com o passar dos anos. E vira, fatalmente, um conjunto: barriga, pochete e pneu, sendo que a contiguidade entre eles dificulta até mesmo estabelecermos os limites entre um e outro.


O problema maior é que o que antes dos 30 era fácil de perder começa a tornar-se um pouco mais complicado, e só uma caminhadinha ou um rolê de bicicleta são insuficientes pro corpo voltar à forma. Parece que o corpo se recusa a abrir mão daqueles pneuzinhos a mais, talvez por alguma sabedoria celular corporal inconsciente, que saberia a necessidade de uma barriguinha mais pronunciada ou de um pneuzinho mais torneado, fazendo questão de mantê-los presos ao corpo, como um mantimento que economizamos em tempos de guerra.
Eu confesso que não senti no corpo a passagem dos 30, talvez por uma sabedoria celular corporal inconsciente, que me possibilitou uma adaptação suave e indolor à nova forma. A barriguinha foi crescendo devagar, diretamente proporcional ao aumento das responsabilidades da vida adulta, e inversamente proporcional à quantidade de cabelos em cima da cabeça. O corpo é sábio, ele sabe economizar a energia vital nos lugares certos...

... é, a sabedoria celular... me tirou os fios da cabeça porque devia precisar concentrar a energia em algum outro lugar... só pode. Ou porque os fios deviam atrapalhar o fluxo de energia... já que os fios de cabelo se magnetizam, tanto que quando passamos (passávamos!) a caneta bic no cabelo os fios levantam (levantavam!)... vai ver é por aí. Essa tal sabedoria celular é esperta mesmo... enfim, só acho que a sabedoria celular devia ao menos consultar a sabedoria da consciência antes de tomar uma atitude tão radical, principalmente nessas decisões tão importantes...

Agora, com os 40 se aproximando, não fui informado – pelo menos não ainda – de algum axioma dos 40, algo correlato ao “axioma da barriguinha dos 30”. O problema da barriguinha, nessa idade, está em geral completamente superado, graças à maturidade que acompanha a idade, através da compreensão profunda do famoso “axioma do remédio”:  “o que não tem remédio, remediado está” (também conhecido no padrão inculto como “ligar o foda-se”).

O homem dos 40 é prático. Dedica-se a resolver problemas, e geralmente é pago pra isso. Normalmente, se não se separou dos 30 aos 40, não se separa mais, porque é o tipo do homem que (finalmente) aprendeu a viver com uma mulher. Com um domínio mais aprofundado da sabedoria celular corporal inconsciente, desliga como um mestre iogue os órgãos sensoriais auditivos, aperfeiçoando o que a tradição milenar chamaria de “audição seletiva” (popularmente conhecido como “entra por um ouvido e sai pelo outro”), constituindo a mais perfeita paz e harmonia na vida conjugal.

O homem dos 40 é aquele que passou finalmente a tratar as coisas sérias com simplicidade, e as coisas simples com seriedade, como um verdadeiro sábio chinês. Talvez por isso o homem de 40 trate com tanta seriedade alguns rituais aperfeiçoados através de muita prática, disciplina, determinação, sejam eles os etílicos, os gastronômicos, os esportivos, os musicais, e os autísticos. Eles podem estar separados, mas geralmente funcionam muito bem juntos, combinados. 

É uma mudança importante de perspectiva, mais que filosófica, ontológica: o dilema aos 40 passa a ser se a barriga dos 30 – aquela que a gente aprendeu a conviver – deve ficar por cima do cinto ou se a gente puxa a calça e aperta o cinto no meio da barriga...

26/01/2012

Música e Percussão na clínica da psicose


 

 

Ultimamente temos observado um grande crescimento e popularização dos limites e possibilidades de utilização da música dentro do “universo psi”. Desde que a expressão artística da loucura passou a ser vista como linguagem, e não como distúrbio da linguagem; como tentativa de conexão ao Outro, e não como desconexão, as artes plásticas e a música têm sido utilizadas como uma forma de tratamento do sofrimento mental, expandindo o repertório de significantes que os sujeitos podem ter à sua disposição para dar sentido ao mundo e a eles mesmos.


No caso da expressão estética da loucura, temos o trabalho precursor de Nise da Silveira e o Museu de Imagens do Inconsciente. Quando falamos em intervenção clínica, ressaltamos o trabalho também inovador de Joseph Berke e Mary Barnes, médico e paciente, retratado no livro “Viagem através da loucura”, de 1977[1]. Com uma abordagem sensível aos rompantes artísticos de sua paciente esquizofrênica, o jovem médico nos convida a um olhar mais próximo da loucura e de sua manifestação. Ele passa a utilizar a arte no tratamento da esquizofrenia, na busca de efeitos terapêuticos, procurando instrumentalizar suas intervenções. Ou seja, não somente para aliviar os momentos de surto, mas também como uma forma de tratá-los.


A música passou a integrar, principalmente nos últimos 10 anos, a grande maioria das instituições de saúde mental, seja como uma atividade pontual, em oficinas de curto período, ou como uma atividade regular, compondo o quadro de atividades clínicas das instituições, junto com os psicólogos, psiquiatras, terapeutas ocupacionais. Também nos hospitais, é cada vez mais freqüente o uso de técnicas artísticas e musicais, para auxiliar no tratamento e na recuperação dos doentes (como por exemplo os “Doutores da Alegria”).


Apesar de sua popularização recente, o uso da música com finalidades curativas não é novo. Desde o início dos tempos, a música ocupa um lugar de destaque no mundo dos homens, nas mais variadas culturas. Seja pelo canto, na entonação de canções ou orações, onde o sentido das palavras entoadas direciona a cura, embaladas pela melodia; seja pela repetição de palavras ou frases curtas, de maneira constante, como um mantra, a ligação da música aos processos curativos é muito antiga. A origem dos mantras encontra-se em escritos que há milhares de anos formam a base filosófica dos pensamentos budista e hinduísta. Hoje sabemos que sua repetição ritmada, aliada a técnicas de respiração específicas, altera a frequência ondulatória cerebral e induz a um estado de transe considerado curativo.[2]


Além da voz, os instrumentos musicais também são utilizados com finalidades curativas há tempos. Dentre os instrumentos considerados curativos ou sagrados, pelos mais diferentes povos, destacam-se os instrumentos de sopro e de percussão. Entre os primeiros, temos por exemplo a flauta sagrada dos índios do Alto Xingu, o Jacuí; ou o Didgeridoo, dos povos aborígenes australianos. Na percussão, especialmente presente nas mais variadas culturas, temos o Djembê, um dos mais importantes tambores africanos; na Índia encontramos as Tablas, cujo tocador, depois de muitos anos como mestre e professor, recebe o título de Ustad, cujo sentido é de um mestre espiritual, passando a ocupar um lugar de destaque na sociedade indiana.

As atividades musicais oferecidas nas instituições de saúde mental normalmente trabalham com a voz, utilizando a letra das canções junto à melodia, buscando seu sentido, podendo integrar o corpo dançando, pulando, encenando; ou com instrumentos como a flauta, o violão, a percussão.  Entretanto, o que se observa muitas vezes é uma aplicação intuitiva da música neste tipo de trabalho. Faz-se oficina de música porque tocar ou cantar “faz bem”.

Na grande maioria das vezes, o profissional responsável pelas atividades musicais é um músico que não entende dos processos psíquicos envolvidos na doença mental, ou um psicólogo que não entende de música, e das possibilidades que a música possibilita. Normalmente, a música é utilizada somente como uma atividade recreativa, de maneira intuitiva, e há que se dizer que, muitas vezes, isso é suficiente. Mas propomo-nos aqui a investigar ao menos um dos caminhos possíveis, de maneira que possamos extrair algum saber para além da intuição.

Por conta das inúmeras formas e possibilidades que a arte possibilita, e que agora também o tratamento “artístico” da doença mental tem possibilitado, levanta-se esta primeira questão: haveria diferença entre um psicólogo “fazendo arte” em uma instituição de saúde mental, como uma proposta de tratamento, e um artista “fazendo arte” dentro da mesma instituição? Ou, para que serve um psicólogo fazendo arte, se eu posso contratar um artista, muito mais “competente” na hora de propor uma atividade artística?

Esta questão foi levantada por Renato Di Renzo, coordenador do Projeto Tam Tam, um projeto precursor de trabalho institucional para doentes mentais criado em Santos, no final dos anos 80, quando o Anchieta foi interditado. Di Renzo foi convidado para trabalhar com teatro e arte na Casa de Saúde Anchieta, hospital psiquiátrico que sofreu intervenção municipal em 1989, por denúncias de maus tratos e morte de internos. Foi nesse momento que surgiu o Projeto Tam Tam, que mais tarde viria a se tornar referência da luta antimanicomial. O Projeto Tam Tam funcionava como um hospital-dia, junto com uma oficina abrigada de trabalho, com pintura de camisetas, quadros, cadernos e outros objetos, vendidos como uma das formas mantenedoras do Projeto. Além da oficina, o Projeto tinha um programa de rádio e um bar, nos quais trabalhavam os próprios usuários. A idéia do Projeto era não ter psicólogos, psiquiatras ou enfermeiros em seu corpo de terapeutas, mas artistas e educadores, por acreditar em uma forma de tratamento que evita deixar o paciente em uma posição paciente, em um lugar de objeto, acreditando que pessoas não-cientistas poderiam lidar com os usuários da instituição de uma maneira direta, não atravessada pela teoria. Como pessoas, e não como rótulos científicos.

Como veremos, o processo trilhado no tratamento da doença mental, resultando na luta antimanicomial e em outras formas institucionais de tratamento, compartilham dessa perspectiva humanizadora, de resgate do sujeito.

Expandindo os Limites 


Nos anos 60, o tratamento da doença mental buscava outros caminhos que pudessem orientar tanto a clínica psiquiátrica quanto a clínica psicanalítica. Na França, um movimento generalizado toma de assalto as instituições. “Abaixo a estrutura!”, os estudantes saem às ruas exigindo reformas nas instituições educacionais. “É proibido proibir”, diziam primeiro nas Universidades. Mas logo a cena começou a se espalhar pelos sindicatos, e uma paralização geral tomou de assalto as instituições parisienses em maio de 68, com confrontos armados e prisões, em meio a palavras de ordem dos estudantes contra toda e qualquer ordem.

Esse movimento serviu como estopim para que um novo paradigma institucional tomasse forma, na tentativa de alargar o conceito de estrutura e de superá-lo, vivido à época como aprisionante e autoritário. Ele atinge diferentes setores da sociedade, e aparece de formas diversas. Nas universidades, “Abaixo o poder dos Mestres!, os alunos querem ser ouvidos!”. Nas instituições psiquiátricas, “Abaixo o poder dos Médicos!”, os loucos querem ser ouvidos!”. Mas era ao estruturalismo e a suas deformações autoritárias que o ataque era feito, em todas as esferas do poder.[3]  

Um movimento anti-manicomial começa então a ser esboçado por alguns psiquiatras, e outras formas de tratamento dos transtornos mentais começam a ser elaboradas, impulsionadas por um movimento conhecido como “anti-psiquiatria”. Assim apelidado por Cooper, este foi um movimento conduzido por alguns médicos, dentre eles Basaglia, Laing e o próprio Cooper, como uma crítica às práticas psiquiátricas desumanizantes conduzidas à época.

Esse movimento propõe uma relação entre a violência do hospital psiquiátrico, que trata o paciente como um objeto ao seu serviço, alienado de seu desejo, e a violência global dos nossos sistemas sociais. Em outras palavras, a anti-psiquiatria pregava que a maioria dos loucos não estavam internados nos hospitais psiquiátricos para se tratar, mas como uma forma pura e simples de exclusão do diferente, exclusão social, que rejeita, restringe, inibe e prende também os pobres e os negros, além dos loucos.

Basaglia assumiu o controle do Hospital Psiquiátrico de Trieste, na Itália, em 1971, e iniciou um processo de desativação do manicômio com a gradual reinserção do internado em seu núcleo social. Diz ele:

Se nós começarmos pelo surgimento da psiquiatria – ela nasceu como um elemento de libertação do homem – devemos recordar que Pinel libertou os loucos das prisões, mas infelizmente, depois de tê-los libertado, colocou-os em outra prisão que se chama manicômio.[4]


A contribuição da anti-psiquiatria foi fundamental para o questionamento da esquizofrenia como um fato bioquímico, neurofisiológico, ou mesmo psicológico. Dessa forma, ajudou a redirecionar o foco do doente, seu organismo e psiquê, para além dele, entendendo-o como um ser de relação, que depende das trocas com a sociedade e a cultura para se constituir como sujeito, e também para poder tratar-se.

Ronald Laing também atenta para o fato social na compreensão da psicose, direcionando sua prática “de uma perspectiva clínica para uma perspectiva social e fenomenológica”[5]. Sob esse ponto de vista, entende a psicose como um distúrbio da relação que o indivíduo estabelece com o mundo, um distúrbio na comunicação do sujeito com a realidade social. Entendendo o ser humano como um “ser-no-mundo”, um ser de relação, busca como forma de tratamento a sustentação da relação do sujeito com o mundo, com o outro, o oposto da prática corrente até então de contenção, internação, separação do mundo, clausura.

Na França, Lacan alargava a compreensão das psicoses, reavivando a cena psicanalítica sobre bases que revisavam a psiquiatria clássica, passando pela filosofia e pela linguística. Seu seminário sobre as psicoses, de 1955[6], serviu de caução para uma série de iniciativas clínicas e institucionais, abrindo um terreno até então inédito para o tratamento das psicoses.

Na esteira dos ensinamentos de Lacan, Maud Mannoni e Robert Lefort propõe uma nova maneira de tratar a psicose e o autismo, onde a análise tradicional mostrava-se insuficiente. Em 1969 fundam, com alguns educadores, a Escola Experimental de Bonneuil, e sugerem como forma possível de tratamento a possibilidade de uma prática institucional atravessada pela psicanálise. Salienta Mannoni:

O paradoxo de Bonneuil é que não se pratica aí a psicanálise (isso é concomitante à recusa da instituição), mas tudo o que aí se faz baseia-se rigorosamente na psicanálise, à qual não se recorre como técnica de ajustamento mas, outrossim, como subversão de um saber e de uma práxis.[7]


A transferência, uma das condições salientadas por Freud para haver análise, não é em dirigida a um analista, mas aos praticantes vários que compõe a equipe, em uma prática conhecida hoje como “prática entre vários”. Mesmo que em Bonneuil não se faça análise propriamente dita, o recorte psicanalítico serve de eixo teórico para possibilitar as práticas e intervenções, direcionar a escuta e o olhar sobre o sujeito, sujeito do inconsciente.

Mannoni propõe uma forma de tratamento que, atravessada pela reflexão que a orientação lacaniana promove, dirige seu olhar para a relação que o indivíduo estabelece com o outro e com o Outro, tanto na etiologia como no tratamento da doença mental, e nas possibilidades infinitas que essa relação, instaurando e ofertando lugares, pode provocar na busca de sentido.

Essa perspectiva de “olhar para o sujeito” conforma uma nova maneira de pensar a doença mental e seu tratamento, e busca tirar o paciente de uma posição de objeto, e conseqüentemente, o médico/psicólogo da posição de mestria. Diz Mannoni:

Se em medicina o ensino pode servir para o bem estar do paciente, sabe-se bem que tal não é o caso em psiquiatria, na qual o paciente serve para a reprodução de um saber de mestre cujo único efeito é de alienar um pouco mais o sujeito.[8]

A Prática Institucional


A mudança no tratamento da psicose busca um retorno ao sujeito e à sua tentativa de construção singular. Deste modo, procura tirar o psicótico da posição de “cura analítica”, trocando a idéia de cura pela possibilidade de “oferta significante”[9]. Sob  um recorte específico, entende o homem como um ser de relação, um “ser-no-mundo”. Antes que mudar uma estrutura – na maioria dos casos, isso não é mais possível, pois a estruturação subjetiva obedece a um tempo lógico de constituição – há uma oferta dos elementos do mundo, elementos significantes, elementos da linguagem. A instituição funciona, então, como um meio que auxilia o sujeito a utilizar o discurso social compartilhado para se estruturar.

O trabalho em instituição seria então uma forma de possibilitar uma circulação do psicótico pelo campo da linguagem, facilitando seu acesso a esse campo, procurando fazer com que ele ocupe esse campo, e não que seja “ocupado por ele”[10]. Assim, entende a própria montagem institucional como uma rede discursiva. Nesse sentido, a própria construção dessa montagem e a circulação por ela já seriam o tratamento, como mostra Kupfer[11].

O trabalho institucional pode ser dividido em várias oficinas, ou grupos de atividades, cada um com uma proposta diferente, como por exemplo oficina de música, de escolarização, pintura, marcenaria, jogos. Cada oficina tem uma especificidade, tem uma linguagem característica, como a música do “Batuque”[12], lidando com os instrumentos de percussão, trabalhando os ritmos e os sons, que podem ser do samba, que podem ser do carnaval, mas também da capoeira, podendo assumir outros contornos.

Mesmo tendo cada oficina uma característica e uma linguagem que a diferencia das outras, todas devem ter um fio condutor comum, que as aproxima, e que permite que seu trabalho seja compreendido em uma rede significante maior, institucional. Este fio condutor é a escuta do sujeito.

Jardim[13] sugere que esse trabalho de alternância nas diferentes atividades possibilita que conceitos psicanalíticos fundamentais como a alienação e a separação possam ser trabalhados em uma perspectiva clínica. Através dessa alternância, uma intervenção pode ser feita no grupo de música, e ao chegar na oficina de jogo, o sujeito pode levar essa intervenção de algum modo, como uma ecolalia ou uma garatuja. Se o profissional estiver atento à escuta do sujeito, aquela garatuja, que pode muito bem ser entendida como um rabisco sem sentido, também pode dizer algo do sujeito, um rabisco que pode virar uma letra, e que pode estar sendo usada pelo sujeito para representar-se de alguma forma.

É nesse contexto que um trabalho com música pode se desenvolver como uma atividade dentro de outras da instituição, com sua linguagem especial e singular, constituída de variados elementos significantes, contendo variadas expressões da cultura. E mesmo singular, comunicar-se com as outras numa teia discursiva institucional.


Ritmo e melodia

A música é uma das mais importantes formas de expressão e representação do homem. Por conter propriedades comuns à fala, como o ritmo, a entonação, a pausa, é um falar sem palavras. É somente graças a essas propriedades do som que a estrutura linguística pode se organizar, possibilitando por exemplo às palavras se agruparem sem se misturarem, compondo um sentido.

Segundo Wisnik, a onda sonora é formada de um sinal que se apresenta e se ausenta, registrados pelo tímpano como uma série de compressões e descompressões. Sem este lapso, o som não pode durar nem começar: “Não há som sem pausa. O tímpano auditivo entraria em espasmo” [14].

Assim como a existência do silêncio é a condição para a existência do som, numa relação dialética onde o sentido de um só aparece na relação com o outro, a pausa também é necessária na linguagem, para que esta possa ter um sentido.

A pausa opera na fala, dentre outras maneiras, através da vírgula e do ponto final, funcionando como ordenadores da cadeia discursiva e possibilitando a emergência de um sentido para o que está sendo dito. Pois o sentido de uma frase só pode ser entendido retroativamente, na cadeia semântica, e esse retorno é operado pelo ponto final, na articulação entre uma sincronia e uma diacronia, como mostra Jerusalinsky[15]. Só quando colocamos o ponto final, é que podemos, retroativamente, voltar ao início da frase para dar-lhe um sentido. Segundo Kupfer,

a estrutura psicótica pode ser comparada a de uma frase melódica sem repouso na tônica, o que equivale a uma frase sem ponto final. A falta de ponto final, de uma pausa no enunciado, de um momento de conclusão, impede a emergência de sentido. (...) falta à criança psicótica o equivalente a esse ponto final.[16]


Assim, uma leitura possível da psicose seria que a estruturação subjetiva do sujeito funcionaria como uma frase sem ponto final, com uma equivalência entre todos os significantes. Se todos os significantes a dispor do psicótico tem o mesmo valor, ele acaba vivendo uma “errância”, como explica Calligaris[17], pois as significações do que fala são sempre significações em si mesmas, não se remetem a um ordenador central, “a uma significação que distribui as significações do mundo”. Segundo ele, uma intervenção externa poderia dar um rumo à rede significante do sujeito, ponto a ponto, de maneira ortopédica, para servir como ponto de basta em sua errância.

Nossa hipótese é que esse ponto de basta pode ser uma palavra, uma pontuação, mas também o tocar um instrumento, em sua relação com os outros instrumentos, cada um referindo-se a um ordenador central, o ritmo, implícito em todos os toques. Assim, mesmo tendo cada instrumento o seu toque específico, um diferente do outro, todos devem obedecer ao mesmo ritmo. O ritmo, nesse sentido, poderia vir a funcionar  como um ordenador do discurso, aquele que cadencia as compressões e descompressões, o som e a pausa.

A significação fálica, ou standard, escaparia ao psicótico pela falta desse ordenador central, um Nome-do-Pai que organizasse seu discurso no laço com o Outro. Nossa hipótese é que uma atividade musical poderia proporcionar uma ordenação ortopédica, através do ritmo, dos tempos e contratempos, na interação dos instrumentos, nas conversas rítmicas, como uma forma de organização da qual o psicótico poderia se utilizar para se organizar e regular sua relação ao Outro.

O tempo de constituição da subjetividade, alguns analistas situam-no até a estruturação edípica. Passado este tempo, o tratamento da psicose buscaria proporcionar ao sujeito condições para que ele possa constituir da melhor maneira possível uma suplência ao Nome-do-Pai, pluralizando-o em pontos de costura ao Outro ortopédicos, através dos quais poderia representar-se e representar o mundo. A proposta é possibilitar ao sujeito circular em um discurso institucional, na medida em que este carrega os mesmos códigos do discurso social, podendo de algum modo estruturar-se em torno dessa relação com um Outro menos ameaçador, regrado, barrado.


O “Batuque”

O Grupo do Batuque nasceu meio por acaso, em uma oficina abrigada de trabalho para jovens e adultos com problemas mentais. Começou com o horário chamado Horário do Descanso, um intervalo entre o almoço e as atividades da tarde, horário em que eles costumavam ficar conversando, descansando, jogando dominó, ou outro jogo qualquer. No início eu participava deste horário de descanso ajudando mais como recreacionista, fazendo o que eles estavam acostumados a fazer.

Um dia, eu levei um violão, em outro um pandeiro, depois um atabaque, e pouco a pouco começamos a criar um espaço conjunto para tocar. Aquilo que primeiramente existia como um espaço onde eu tocava e eles me ouviam, atentos, foi transformando-se, por exigência das palmas e do ritmo ansioso batucado nas mesas, num espaço onde todos pudessem se expressar tocando. A partir daí comecei a levar todos os meus instrumentos, até que a direção resolveu comprar instrumentos de percussão para a instituição e devolver os meus.

O Grupo do Batuque começa, nesse primeiro momento, como uma divisão do Horário de Desacanso: quem quisesse poderia tocar. Metade quis. A outra metade foi aderindo paulatinamente, até que todos participassem, e o pequeno momento de descanso se tornasse uma oficina estruturada, 3 vezes por semana.

A escolha pela percussão não se deve somente pelo fato de ser mais fácil a execução, mas principalmente pela disponibilidade instrumental que propicia, lembrando o fato de que estamos lidando com um grupo. Os instrumentos percussivos possibilitam uma interação peculiar entre os componentes de um grupo, na medida em que todos podem – e devem – tocar juntos, ao mesmo tempo, mas cada um com um toque diferente, respeitando seu instrumento e a especificidade do timbre e do toque, mais grave ou mais agudo, mais alto ou mais baixo, mais rápido ou mais lento, mais subdividido ou menos.

Assim, o Grupo do Batuque era composto por várias pessoas, cada uma com um instrumento, tocando um toque diferente, e mesmo assim, todos tocando juntos por causa de um elemento comum: o ritmo. Essa sempre foi a Lei maior, o significante central que espalhava as significações do que acontecia lá. Mesmo quando alguém tocava fora do ritmo, mantinha a todo o momento o seu fora-do-ritmo como uma referência constante e dialética com o ritmo imposto pelo grupo, numa referência constante e dialética do eu com o Outro.

Esta tensão dialética se mantinha sempre presente. Um dos objetivos era que mantivessem um ritmo comum, mas sem se misturar com o grupo, numa diferenciação sempre sugerida também entre os instrumentos e seus diferentes toques. Mantínhamos, por fim, o limite do grupo. Esse limite era dado pelo ritmo.

Assim, a aposta era que o ritmo, assim como todos os lugares imaginários que um grupo de batuque poderia evocar, pudessem desempenhar uma função organizadora para o sujeito. Deste modo, auxiliando como ordenador de um discurso específico, o discurso musical, mas apostando que algo dessa estrutura mínima pudesse ser deslocada.

Uma intervenção comum era introduzir um contratempo, um lapso entre um movimento e outro, entre um som e outro, diferenciando-os. Através de um contraponto como esse a aposta era que pudéssemos introduzir uma marca simbólica, uma função de falta, um buraco, que ajudaria o sujeito a estruturar-se através da diferenciação, fazendo-o produzir um som diferente do meu, com a aposta de que este som também o diferenciasse de mim.

O ritmo como “oferta significante” e a montagem institucional


Analogamente ao discurso – uma palavra dentro de uma frase, ou uma frase dentro de um parágrafo – o Batuque necessita, mesmo tendo seus elementos uma organização própria, do mesmo modo que qualquer outra atividade da instituição, do apoio de uma rede discursiva institucional, do discurso social, da frase inteira, para atender à expectativa de atividade estruturante.

Não nos referimos a outra coisa senão à importância da montagem institucional, à possibilidade de um significante permanecer na troca das atividades, e à possibilidade do sujeito poder levar com ele algo de uma oficina para outra, algo que produza uma marca que diga respeito a ele.

Assim, a estrutura rítmica em si é estruturante, mas somente em uma montagem institucional que assegure uma escuta a este algo que o sujeito possa levar de um lugar ao outro, e que possa ouvi-lo como um “algo”, e significá-lo, é que algum laço com o desejo pode ser construído do sujeito ao Outro, ajudando-o a estruturar-se. Ou seja, com o devido resgate quando aparece, mesmo que rapidamente, ainda sob a forma de uma estereotipia ou de um signo, e sua transformação (ao longo das oficinas) em uma marca que possa representar o sujeito.

Assim, há oferta de significantes nas várias atividades, e há sempre a aposta de que o sujeito possa se ligar a algum deles. A partir desta implicação, oriunda de uma atividade qualquer, pode-se trabalhar com esse significante em outras atividades, com o objetivo de introduzir esta marca em uma cadeia simbólica, e metaforizá-la nos outros lugares. Tentarmos construir uma cadeia entre as atividades visa possibilitar exatamente esse deslocamento. É esse deslocamento, finalmente, que faz aparecer o sujeito, ali onde sua marca faz laço.

Concluindo, tanto a palavra quanto o ritmo têm efeitos estruturantes para o sujeito, dadas as características especiais que compõem a ambos os discursos, como ordenação, pausa, ponto final, entonação, ambos constituindo-se em uma especial linguagem. Mesmo que tais ferramentas propiciem efeitos terapêuticos, elas dependem de um deslocamento, de uma circulação pelo discurso institucional, para poder propiciar o aparecimento do sujeito.

A importância da música vai além das particularidades dessa ferramenta: como qualquer outra atividade, ela deve se encaixar em uma teia maior, em uma rede discursiva institucional. Desse modo, independentemente do objeto específico com o qual cada oficina trabalha, seja ele a música ou as tintas, é fundamental a circulação dos pacientes entre as atividades, e a escuta do sujeito nesta circulação. Como salienta Lacan (1969-70), “o significante é aquilo que representa o sujeito para outro significante”, ou seja, o sujeito é este que surge exatamente no espaço entre dois significantes. Transportando para a teia institucional, a aposta é que o sujeito surja também entre as diferentes atividades ofertadas pela instituição, e que crie seus pontos de referência pelos quais possa circular de maneira mais pacífica pelo universo simbólico.  







[1] Berke, J. & Barnes, M. (1977). Viagem através da loucura. Rio de Janeiro, F. Alves.

[2] Mc Clellan, R. (1994). O Poder Terapêutico da Música. São Paulo, Siciliano.

[3] Le Goff, J.-P. (2002). Mai 68, l’héritage impossible. Paris, La Découverte.
[4] Basaglia, F. (1982). A psiquiatria alternativa. São Paulo, Ed. Brasil Debates, p.13.
[5] Laing, R. D. e Esterson, A. (1979). Sanidade, loucura e a família. Belo Horizonte, Interlivros, p.24.
[6] Lacan, J. (1955-56). Seminário 3: As Psicoses. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1988.
[7] Mannoni, M. (1977). Educação impossível. Rio de Janeiro, Zahar, p.16.
[8] Mannoni, M. (1988). A contribuição de Winnicot para um trajeto na psicanálise. In Estilos da ClínicaRevista sobre a Infância com Problemas. São Paulo, Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida – IPUSP, V.3,  nº 4, p.19.
[9] Kupfer, M.C.M. (1997). Educação Terapêutica: o que a psicanálise pode pedir à educação. In Estilos da Clínica – Revista sobre a Infância com Problemas. São Paulo, Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida – IPUSP, V.2,  nº 2.
[10] Luis Carlos Nogueira, comunicação pessoal.
[11] Kupfer, M.C.M. (2000). Educação para o futuro: psicanálise e educação. São Paulo, Escuta.

[12] Com relação ao “Grupo do Batuque”, ler mais à frente.
[13] Jardim, G. (1998). Um Lugar de Histórias. In Estilos da ClínicaRevista sobre a Infância com Problemas. São Paulo, Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida – IPUSP, V.3,  nº 5.

[14] Wisnik, J.M. (1989). O Som e o Sentido. São Paulo, Companhia das Letras, p.16.
[15] Jerusalinsky, A. (1997). A Escolarização de Criança Psicóticas. In Estilos da ClínicaRevista sobre a Infância com Problemas. São Paulo, Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida – IPUSP, V.2,  nº 2.
[16] Kupfer, M.C.M. (1996). A presença da psicanálise nos dispositivos institucionais de tratamento da psicose. In Estilos da Clínica – Revista sobre a Infância com Problemas. São Paulo, Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida – IPUSP, ano 1,  nº 1.
[17] Calligaris, C. (1989). Introdução a uma clínica diferencial das psicoses. Porto Alegre, Artes Médicas, p.12.

palmas

Essa foi umas minhas primeiras trilhas após o "Olhos Pasmados", documentário de Kiko Goiffman e Jurandir Muller.

25/01/2012

Devemos ler Evaristo de Moraes? Notas sobre a criminalidade na infância e na adolescência



Estação da Luz, em São Paulo: medidas higienistas na cracolândia

  
Evaristo de Moraes foi um importante jurista brasileiro de grande projeção entre 1890 e 1930 e considerado um dos fundadores do Direito Penal brasileiro. Sua produção intelectual estende-se por mais de 30 livros publicados entre o final do século XIX e o começo do XX, nos quais se revelou um dos grandes cientistas sociais do Brasil pós-escravocrata, em obras que tratam de assuntos diversos como a escravatura, a infância, a adolescência, a prostituição, a criminalidade, a psicologia criminal, a patologia social. Ainda hoje é referência em assuntos jurídicos relativos à criminalidade e à legislação específica sobre crianças e adolescentes.
Algumas das concepções de Evaristo de Moraes sobre a infância e a adolescência partilham da mesma ideologia do primeiro Código de Menores, de 1927, de autoria do jurista Mello Mattos. No centro de suas posições sobre esse tema estava a defesa do tratamento jurídico diferenciado para adultos e crianças, de uma concepção não punitiva das questões criminais da infância, mas sócio-educativa. Por outro lado, este Código de Menores tinha um caráter discriminatório, pois associava a delinquência à pobreza, motivo pelo qual as crianças de famílias de baixa renda deveriam ser tuteladas pelo Estado.
Passados quase 100 anos, não é difícil encontrar em seu texto as marcas de um totalitarismo científico, principalmente à luz de autores que nos ajudam a desvelar as ideologias subjacentes a teorias e concepções e que nos ensinam que é preciso datar as idéias, contextualizá-las, para que possamos entender suas relações com a realidade histórico-social.  
Para apreendermos o que o texto de Moraes nos ensina para além de suas concepções, devemos descobrir o que subjaz a cada linha, a cada palavra, a cada uma das centenas de citações. Moraes não fala por si só, mas fala de dentro de seu tempo, do “caldeirão simbólico” em que estava mergulhado. É este caldeirão que pretendemos resgatar aqui, através da análise de um de seus textos.
Dividimos nossa análise em três partes: o texto, a forma e o contexto, seguidas das considerações finais.


1. O Texto
Em Criminalidade da infância e da adolescência, de 1916[1], Moraes tece uma articulação entre diferentes campos científicos que tomam como objeto a criança e o adolescente: o direito, a medicina, a psicologia, a educação. Era forte, à época, a influência do discurso médico no campo das ciências jurídicas, que passam a tratar a criminalidade como uma doença de base orgânica. Assim sendo, desde o primeiro parágrafo encontramos a tese, que irá atravessar todo o livro, ãs vezes de maneira explícita, às vezes de maneira velada, segundo a qual a criminalidade é uma doença transmitida, como as características físicas, por herança genética de características morais e intelectuais, desvios e vícios do espírito. Diz ele:


A mesma lei preside à transmissão dos atributos físicos e à transmissão das qualidades morais e intelectuais. (p.12)
A influência da hereditariedade nervosa, alcoólica, sifilítica, tuberculosa, reflete na raça. (p.16)
(...) casos de tendência inata e fatal para o crime... (p.28)
(...) meninos e meninas com tendências irresistíveis para a deambulação, dominados por incoercível impulso, que os leva a abandonar a casa paterna, sem motivo, e às vezes sem destino. (p.40)

Moraes defende a hereditariedade do caráter, da predestinação ao crime dos filhos de pais “degenerados”. Ao mesmo tempo, defende também que fatores sociais determinam a criminalidade, passando do campo biológico ao campo social. Ou seja, mesmo que ele sustente que a criminalidade tenha uma causa possível nos fatores orgânicos e hereditários, ele diz:
 (...) desorganização da família e a má influência diretamente exercida em certos meios familiares. (p.28)
(...) a maior parte dos desvios criminosos dos menores são devidos à má influência da família ou do meio em que foram educados. (p.30)[2]

Assim, defende que causas sociais, ou a má influência exercida pela desorganização da família e do meio, também seriam fatores determinantes da criminalidade. Mas o “social” a que o autor se refere ainda é representado somente pela família, e não pelas condições econômicas, sociais e políticas que determinam as condições da vida familiar. Deste modo, poderíamos dizer que a causa “social” continua sendo individual, pois o problema passa a ser dos membros da família tomados individualmente, ou tomados como um grupo doente, não inseridos na realidade social.
O autor refere-se a “taras”, a “viciosidade moral”, a “hereditariedade nervosa”, a “hereditariedade alcoólica”, a “tendência inata e fatal para o crime”. Ou seja, segundo Moraes, a criança criminosa nasce criminosa por conta de um determinismo biológico, não se torna criminosa. Ao lado das explicações organicistas encontramos também determinantes ambientais para explicar as causas da criminalidade: as más influências, a desorganização da família, a má educação, o alcoolismo aprendido. Ou seja, a criança criminosa pode não nascer criminosa, mas tornar-se criminosa por conta das más condições em que é criada e educada.
Em uma primeira leitura, devemos estar advertidos de que essas explicações não visam à complementação uma da outra, como poderíamos pensar, mas são contrárias uma à outra. Moraes diz que a criança nasce com tendências inatas para a delinqüência, e depois diz que não se nasce vicioso, mas viciável. Essa é uma contradição importante em seu texto, pois parece que o autor defende concepções contrários não para elencar as diversas explicações possíveis das causas da criminalidade, mas porque ele percebe a insuficiência e a contradição de suas explicações, passando de uma à outra para tentar tapar os buracos das teorias que ele mesmo percebe insuficientes, em uma costura impossível.
Por outro lado, podemos fazer outra leitura dessa suposta “contradição”, agora como uma mudança de perspectiva adotada pelo autor a partir das aporias que ele mesmo encontra nas teorias organicistas da criminalidade. Assim, podemos considerar que Evaristo começa seu livro elencando as causas orgânicas da criminalidade porque estas eram consenso na época, mas parte para as causas sociais da criminalidade por perceber que as primeiras não dão conta da explicação do problema pelas aporias que contém. Desse modo, verificamos que ao longo do texto há uma certa problematização da questão, ao afastar-se tão somente das causas orgânicas, e incluir as desigualdades sócio-econômicas, as más condições de moradia, o excesso de trabalho, a falta de oportunidades da classe trabalhadora, como possíveis causas da criminalidade.
Se considerarmos essa mudança de perspectiva como um avanço na análise que faz o autor, percebemos de outro lado um recuo na finalidade que dá à questão, posto que Moraes é atravessado por outra característica de seu tempo, que dá o tom da maioria das idéias apresentadas quanto à criminalidade na infância: a inevitabilidade de seu aparecimento. Ou seja, ela é uma teoria determinista:
Pode o filho de um alcoólico e de uma prostituta sifilítica não apresentar manifestações sifilíticas, nem mostrar tendência ou predisposição para o alcoolismo; mas, quase necessariamente, será uma criatura enferma, fraca de corpo, débil de espírito, menos preparada para a luta pela vida, requerendo cuidados especiais de tratamento e de educação. (p.14)
Como fator individual, atua o alcoolismo por outra forma, isto é, diretamente, determinando a delinquência infantil e juvenil. (p.21)
(...) casos de tendência inata e fatal para o crime... (p.28)

O autor elenca as causas orgânicas e “sociais” (reduzidas à família) da criminalidade, e vai construindo relações diretas entre elas até chegar à pobreza. Assim, se um pobre comete um crime, a pobreza é, em última instância, a causa da criminalidade, o que significa afirmar que todo pobre carrega o germe do crime. Esse determinismo atravessa o texto como axiomas incontestáveis. As qualidades morais e intelectuais das classes pobres conteriam naturalmente uma predisposição ao vício, ao alcoolismo, à deambulação, ao abandono, ao mau exemplo, aos maus tratos. Ao relacionar pobreza com degeneração orgânica e esta com criminalidade, o autor endossa as teses da Eugenia, dominantes naquele período.
Desse modo, Moraes executa um deslocamento metonímico[3] ao longo do livro: dos criminosos ele passa às prostitutas, aos alcoólicos, aos operários, aos pobres, para explicar a criminalidade. No caso da classe operária, diz ele: “incapazes, por exemplo, são os pais operários” (p.32), “incapazes de educar os filhos” (p.33) na “promiscuidade malsã das moradias pobres” (p.35). Mesmo que Moraes consiga perceber os fatores econômicos, sociais e políticos nos quais está inserida a classe trabalhadora, tentando compreender os possíveis efeitos do excesso de trabalho, das más condições de moradia, da necessidade de reestruturação de políticas públicas que possibilitem uma melhor condição de vida aos pobres e miseráveis, a perspectiva que ele encontra é determinista, pois sobrepõe o excesso de trabalho à produção de degenerados, ou seja, “todo pobre que trabalha em excesso gera filhos criminosos”. Mesmo que Moraes mostre nestas passagens certa sensibilidade às dificuldades impostas pela pobreza, ele toma como parâmetro a concepção burguesa de família normal, fortalecendo assim estereótipos e preconceitos contra os pobres:

A criança nascida de pais debilitados pelo excesso de trabalho, quais são os operários, pode ter o aspecto comum de todas as crianças, parecendo, aos olhos dos inexpertos, sadia; mas provavelmente se mostrará pouco apta, inferior aos de sua idade, difícil de educar, propensa à ociosidade e às sugestões dos criminosos. (p.14)
É erro acreditar que a miséria somente arrasta ao crime por causa da necessidade, da fome. A miséria é grande geradora de criminosos porque é grande geradora de degenerados. (p.15)
Incapazes, por exemplo, são os pais operários, que por extrema necessidade têm de abandonar a casa logo nas primeiras horas do dia, deixando as crianças sem vigilância, entregues umas às outras ou aos vizinhos mais ou menos indiferentes. (p.32)
(...) a promiscuidade malsã das moradias pobres. (p.35)
À noite, nem sempre recolhendo cedo, as lamentáveis criaturinhas são constrangidas à revoltante promiscuidade, dormindo, freqüentemente, em uma só esteira toda a família. (p.36)

O autor defende a instrução pública primária obrigatória como recurso preventivo e as prisões correcionais como recurso disciplinar curativo da criminalidade das crianças e adolescentes. As idéias de Moraes sobre a Educação, no que tange à prevenção e correção, escapam por um breve momento do determinismo que atravessa a maior parte de suas idéias, ao tratar dos atos infracionais das crianças e adolescentes não como um caso de polícia, mas como um caso de educação, abrindo uma possibilidade social e cultural que escapa do determinismo natural:

Em relação a esses pequenos entes inexpertos, não se trata de fazer executar pena ou castigo, mas sim de lhes dar educação, com o fim de colocá-los em circunstâncias de ganharem honrada e honestamente a vida, e de serem úteis à sociedade, em vez de constantemente a prejudicarem. (p.96)


Ele considera o menor como um ser em desenvolvimento a ser protegido, e não a ser punido, propondo uma substituição das medidas de punição em medidas de proteção e de tutela educativa. Na separação de menores e adultos quanto à aplicação de medidas correcionais, a privação de liberdade dos menores deveria ser feita em estabelecimentos de educação ou em escolas de reforma ou reformatórios. A crença era a de que a educação correcional pudesse ter êxito, sem deixar restos, como se a causa da delinqüência fosse – novamente – individual, e o tratamento-correção pudesse resolver o problema se aplicado aos indivíduos, como se eles fossem os responsáveis pela violência social da qual são vítimas. Mesmo assim, ao analisar a situação do ensino público, Moraes constata que entre a teoria e a prática havia um abismo que impedia o ideal educacional de ser efetivado:

Efetivamente, por toda parte se viu que os progressos na instrução literária não obstavam aos progressos da criminalidade (...) Chegou-se até a atribuir às grandes escolas públicas, em cujas salas se aglomeram centenas de alunos, certa influência no incremento dessa apavorante criminalidade. (p.44)

Verificamos que a situação da Educação brasileira não mudou muito, pois a política de desamparo e abandono por parte da administração pública é historicamente determinada. Não bastam as inúmeras reformas educacionais feitas por sucessivos governos, posto que elas somente reformam a forma (e não as causas), a grande maioria delas destinada a apagar de maneira cínica as estatísticas de evasão e repetência. Infelizmente, a educação ainda não visa à instrução e à emancipação política das classes pobres, pois sua falta de instrução interessa de maneira perversa às classes dominantes, para a manutenção de uma política de subserviência que o Brasil escravocrata nunca conseguiu abandonar. Desse modo, Moraes denuncia que a educação como prevenção, propiciada por um ensino público depauperado, pode contribuir para aumentar – ao invés de diminuir – a criminalidade.
Novamente, Evaristo nos indica os determinantes sociais que se escondem por trás de suas análises muitas vezes individualizantes do problema. Como a educação pública não tem cumprido seu papel social, ele defende uma educação escolar específica aos pobres, moralizadora e técnico-profissionalizante, com vistas a tornar essas crianças “socialmente aproveitáveis” (p.52).
Com o advento das máquinas e da crescente industrialização do começo do século, Moraes defende que aos capitalistas interessa “o operário-produtor, apenas capaz de juntar uma força consciente às forças mecânicas e automáticas da engrenagem” (p.47). A educação técnico-profissionalizante que o autor defende tem por objetivo a submissão das classes operárias, não visa à emancipação do homem com relação às condições nas quais está inserido, para não enfrentar nem modificar as condições objetivas de desigualdade social:

A educação, dada nos estabelecimentos, deve corresponder, nas suas condições, àquela ministrada às classes operárias, isto é, deve ter como fundamento um ensino ao nível das escolas elementares, a maior simplicidade na alimentação, no vestuário e no alojamento, e, sobretudo, a persistência e o maior cuidado nas questões de trabalho. (...) para se preparar convenientemente para o futuro, que com maior probabilidade lhes esteja destinado. (p.97)

Mais do que programas educacionais diferentes para alunos diferentes, ele defende uma classificação sistemática dos alunos por meio de testes de inteligência, segundo as idéias de Binet, “tendente à separação dos inadaptáveis às condições gerais do ensino” (p.52). Ou seja, ele recomenda que se classifiquem as crianças para segregar, pois os “anormais ou degenerados” constituem fator de desordem e de corrupção.
Assim, o projeto educacional para as classes pobres, segundo Moraes, teria dois eixos: a adaptação, para que continuem sendo operários e conformados, e a correção, que responsabiliza o indivíduo e quer regenerá-lo para o convívio numa sociedade supostamente garantidora de igualdade de oportunidades em função das aptidões naturais de cada um.
Embora mencione os testes psicológicos, prescreve uma avaliação médica das crianças delinqüentes antes de serem encaminhadas à justiça. À Medicina caberia avaliar os infratores e explicar a criminalidade. O Direito ficaria encarregado unicamente de definir e autorizar as medidas correcionais cabíveis a serem executadas pela Educação, responsável pela prevenção, correção e adaptação.

2. A Forma
Se “queimarmos” Evaristo de Moraes por causa de muitas de suas idéias preconceituosas, vamos perder a grande oportunidade de aprender sobre o período em que ele escreve, sobre a relação entre as idéias e a realidade social em que são produzidas, e sobre os legados do passado ao presente.
Segundo o historiador norte-americano Robert Darnton (1986) sobre a leitura de textos antigos,
Nada é mais fácil do que deslizar para a confortável suposição de que os europeus pensavam e sentiam, há dois séculos, exatamente como o fazemos agora. (...) Precisamos ser constantemente alertados contra uma falsa impressão de familiaridade com o passado, de recebermos doses de choque cultural. (Darnton, 1986, p. 15)

Uma saída possível, segundo ele, encontra-se em um método de pesquisa conhecido como “história de tendência etnográfica”, ou História das Mentalidades:

A maioria das pessoas tende a pensar que a história cultural aborda a cultura superior, a cultura com C maiúsculo. (...) Enquanto o historiador das idéias esboça a filiação do pensamento formal, de um filósofo para outro, o historiador etnográfico estuda a maneira como as pessoas comuns entendiam o mundo. Tenta descobrir sua cosmologia, mostrar como organizavam a realidade em suas mentes e a expressavam em seu comportamento. (...) Então, os historiadores deveriam ser capazes de perceber como as culturas formulam maneiras de pensar, mesmo no caso dos grandes pensadores. Um poeta ou um filósofo pode levar a linguagem aos seus limites mas, a certa altura, vai deparar-se com a estrutura externa da significação. (Darnton, 1986, p. 14)

Em seu livro O Grande Massacre de Gatos (1986), Darnton pesquisa os arquivos do Antigo Regime francês, realizando uma análise dos textos de grandes pensadores, como Diderot e Rousseau, lado a lado com textos de contadores de histórias camponeses e dos plebeus matadores de gatos. Abandonando a diferenciação habitual entre cultura de elite e cultura popular, ele mostra como “os intelectuais e as pessoas comuns lidavam com o mesmo tipo de problema” (Darnton, 1986, p. 18). Esse mesmo tipo de problema seria essa “estrutura externa de significação”, ou seja, a estrutura simbólica comum a todos, histórica, datada, localizada, “caldeirão simbólico” de onde tiramos palavras, conceitos, idéias e crenças, para explicar o mundo, para construir nossas teorias, simbolismo do qual somos também reféns, estrutura que nos antecede e nos ultrapassa.  
As idéias de Moraes certamente influenciavam as opiniões e práticas da época, dada a sua pertença de classe na rígida hierarquia social brasileira, de onde provinham os cientistas da época, eles também atravessados pelo imaginário cultural e social do início do século, tornando-se receptor e emissor de teses que, antes mesmo que fossem dele, eram de Outro[4]. Ou seja, ele também estava imerso em um caldeirão simbólico que o antecedia e o ultrapassava. Assim, podemos supor que o imaginário cultural desvelado por Evaristo de Moraes no terreno jurídico pode ser entendido como efeito de um imaginário que atravessava a cultura de sua época de maneira generalizada, atingindo também o campo das instituições científicas, como as instituições médicas e educativas.
Criminalidade da infância e da adolescência impressiona pela erudição e pelas inúmeras citações em português, francês, italiano, espanhol, alemão, inglês, e de dados estatísticos de diferentes origens: Londres, Estocolmo, Roma, São Petersburgo, Paris, Amsterdam, Turim, Washington. Impressiona e ao mesmo tempo intimida, convocando-nos a concordar com ele pela forma com que suas afirmações são avalizadas, pois as transcrições em tantas línguas estrangeiras e as estatísticas produzidas em grandes centros urbanos convocam o leitor a concordar com as teses apresentadas.
Encontramos nesse texto um importante documento histórico do império da ciência positiva naquele início de século brasileiro, de como ela se organizava na estrutura de um texto “persuasivo” que obturava o espaço da dúvida, da incógnita, do questionamento, por meio de afirmações impositivas porque alçadas à condição de verdades e certezas inquestionáveis:

(...) expor as causas que lhe assinalam os competentes (...) (p.11)
(...) a ninguém é lícito, no estado atual dos conhecimentos humanos, negar essa influência hereditária. (p.12)
(...) se comprovou, à evidência, que a mesma lei preside à transmissão dos atributos físicos e à transmissão das qualidades morais e intelectuais. (p. 12)
Já está mais do que sabido, desde a publicação da obra de Morel (...). (p.13)
Está, atualmente, averiguado, (...)”p. 15
Em sustentação de tal verdade axiomática, aproveitou Laurent (...) esta frase de alta precisão científica (...). (p.16)
Em substancioso e bem documentado capítulo, demonstrou ele que (...). (p.22)
Descreve Stanley Hall, de acordo com eminentes especialistas (...). (p.24)
[Georges Vidal] (...) diz, com verdade, que a experiência tem mostrado (...). (p.30)

Percebe-se que a estrutura positiva que sustenta o texto inclui uma escolha precisa das palavras, das afirmações confirmadas por dados numéricos e pela suposta competência de pesquisadores estrangeiros, com vistas à produção da “obviedade”. Essa “forma” dada ao texto desvela a própria concepção de ciência dominante no período: como uma verdade inquestionável, porque sempre baseada em fatos que cumpriam a função de eliminar a dúvida quanto à natureza do conhecimento produzido, fosse dos cientistas, fosse dos profissionais que se dedicavam ao assunto.
Podemos considerar que esta concepção de rigor do conhecimento científico é um instrumento de dominação que revela “o lugar da ciência moderna na esfera do poder”, no projeto político de “tudo conhecer para tudo controlar” (Patto, 2000, p.6). Ela está a serviço da dominação dos pobres, dos negros e dos “primitivos” pela episteme, como justificativa ilustrada ao processo colonizatório.
Com a ascensão do modo capitalista de produção, o saber torna-se propriedade intelectual do senhor, e o proletário é expropriado de seu saber no processo de industrialização. Ou seja, após ter sido despojado dos meios de produção, com a industrialização concentrando as máquinas nas mãos dos senhores, o artesão e o aprendiz transformados em operários foram despojados de seu savoir-faire, principalmente a partir da lógica industrial da “linha de produção”. Ao fragmentar a produção, o saber operário foi também fragmentado, o que facilitou a dominação pela episteme. Lacan resume isto nos seguintes termos: “o proletário não é simplesmente explorado, ele é aquele que foi despojado de sua função de saber” (Lacan, 1969/70, p.140).
As teses de Moraes são representantes do “caldeirão simbólico” que dominava as ciências e o cotidiano, e submetia pobres, negros e operários na Primeira República brasileira. É interessante conhecer um texto do início do século que se vale de Lombroso e Morel e de discípulos desses expoentes do chamado “racismo científico” e do “darwinismo social”, cujas teses eram hegemônicas no mundo ocidental na virada do século passado.

 

3. O Contexto

Em O espetáculo das raças (1993), Lilia Schwarcz traça um panorama do imaginário cultural e simbólico do Brasil entre 1870-1930 que nos ajuda a contextualizar as teses de Moraes. Nessa época, tem início uma produção intelectual influenciada por teses produzidas nos grandes centros europeus, sendo aqui adaptadas pelos filhos da aristocracia que traziam do além-mar as novidades científicas. Impulsionadas pelo crescimento econômico originado da produção cafeeira, as elites brasileiras importavam não só idéias, mas também hábitos, costumes e estilos de vida. Nossos intelectuais queriam que o país fosse, aos olhos das nações estrangeiras, mais do que um lugar exótico e rico de recursos naturais que atraía naturalistas e exploradores, mas uma nação moderna, civilizada, industrial, lugar de progresso da ciência  e da técnica.
A sociedade brasileira no começo do século era rigidamente hierarquizada. Os filhos dos oligarcas locais formavam-se em faculdades européias e importavam dos grandes centros europeus o fervilhar científico impulsionado pela industrialização crescente. Em terras brasileiras, essa produção intelectual européia transformava-se em uma caricatura à brasileira de um bovarismo em pleno funcionamento. Saíram desse segmento os primeiros intelectuais brasileiros, ex-escravocratas, latifundiários, e posteriormente, industriais. E brancos. Do outro lado da sociedade, negros recém-libertos, mestiços, trabalhadores nas lavouras e na indústria, quase todos com pouca ou nenhuma escolarização. A classe média urbana era diminuta, composta basicamente pelos trabalhadores estrangeiros que imigraram para o país para substituir a mão de obra escrava nas lavouras e para se tornarem pequenos comerciantes.
No bojo da disseminação das teorias raciais em voga, que viam o mestiço como um ser degenerado, o Brasil era considerado com desconforto como um país tipicamente miscigenado, como um “festival de cores” (Aimard, 1888, apud Schwarcz, 1993, p.11), como uma “sociedade de raças cruzadas” (Romero, 1895, apud Schwarcz, 1993, p.11), face do país que causava preocupação às nossas elites econômicas e intelectuais.
O processo de cruzamento entre as raças resultaria, segundo essas teorias, em “degeneração do caráter” e “viciosidade moral”, o que constituía um entrave ao desenvolvimento de um país miscigenado. No final do século XIX, o conde francês Arthur de Gobineau, autor de um livro clássico sobre a desigualdade entre as raças[5], considerava a população brasileira como “uma população totalmente mulata, viciada no sangue e no espírito e assustadoramente feia” (apud Schwarcz, 1993, p.13). As expressões utilizadas por Moraes, como “viciosidade moral”, descendem de uma ciência racial que imperava na Europa e que fazia da mestiçagem brasileira “uma pista para explicar o atraso ou uma possível inviabilidade da nação” (Schwarcz,1993, p.13). Nesse cenário, medidas eugênicas de aprimoramento da raça começaram a ser vistas aqui como uma solução possível para o desenvolvimento da nação. No I Congresso Internacional das Raças, ocorrido em Paris, em 1911, o médico brasileiro João Batista Lacerda, então Diretor do Museu Nacional, defendeu a seguinte tese: “O Brasil mestiço de hoje tem no branqueamento, em um século, sua perspectiva, saída e solução.” (apud Schwarcz, 1993, p.11)
Com a abolição da escravatura, a população negra, quase toda desempregada, inchava os centros urbanos. Neste momento, as teorias raciais e o determinismo darwinista social são utilizados como legitimação da nova desigualdade social:

Em meio a um contexto caracterizado pelo enfraquecimento e final da escravidão e pela realização de um novo projeto político para o país, as teorias raciais se apresentavam enquanto modelo teórico viável na justificação do complicado jogo de interesses que se montava. (Schwarcz, 1993, p.18)


As décadas seguintes à libertação dos escravos podem ser concebidas como o ápice deste movimento intelectual, no qual os homens de ciência de diferentes instituições - médicas, jurídicas, antropológicas, historiográficas - propunham-se a legitimar e manter intacta a hierarquia social, valendo-se de teorias (pseudo) científicas que vinham sendo usadas, desde o sécuo XIX, pelos países europeus imperialistas como justificativas teóricas para as suas práticas agressivas de dominação. (Schwarcz, 1993, p.30).
Contrariamente ao ideário iluminista que inspirou a Revolução Francesa e que afirmava o princípio da igualdade, as teorias raciais que surgem a partir do século XIX buscam estabelecer correlações rígidas entre patrimônio genético, aptidões intelectuais e inclinações morais individuais, tendo em vista avaliar e selecionar as pessoas para segregar os inferiores. Há um progressivo afastamento dos ideais humanistas em direção a um determinismo biológico das tendências e capacidades de indivíduos, classes e raças. Desse modo, o século XIX assiste ao nascimento e desenvolvimento da frenologia e da antropometria como concepções e técnicas que permitiriam aos médicos determinar capacidades intelectuais e tendências morais levando em conta o tamanho e a proporção de atributos físicos como a conformação do crânio, o tamanho e o formato do nariz, da testa, dos olhos, e as proporções entre as partes do corpo.
A eugenia surge também nesse contexto. Esta ciência, criada em 1883, na Inglaterra, fundamentava a interdição da reprodução ou mesmo a eliminação de membros das raças consideradas inferiores como meio de aprimorar as populações pela seleção de características que garantissem o predomínio de uma raça pura ou superior. As propostas eugênicas de “depuração da raça” não foram exclusividade da Alemanha hitlerista. Antes dela, leis eugênicas de esterilização foram introduzidas em vários países, como nos Estados Unidos, em 1919, na Suíça, em 1928, e na Dinamarca, em 1929. O racismo científico, que influenciou toda uma geração de intelectuais brasileiros no começo do século XX, como Evaristo de Moraes, era uma corrente dominante na comunidade científica ocidental da época.
Nas primeiras faculdades de direito brasileiras, em Recife e em São Paulo, jovens intelectuais que se formam neste período propõem um rompimento com as visões de mundo tradicionais, impregnadas de religiosidade, em benefício de uma visão laica trazida por doutrinas que davam precedência ao conhecimento científico como instrumento de progresso material e social. Uma nova concepção do Direito, científica, aliada às ciências naturais, entre as quais uma antropologia física de base biológica e evolutiva, está em construção no final do século XIX. A partir dos estudos de antropologia criminal de Lombroso e Morel, a lente dos especialistas desvia-se do crime em si para a análise do criminoso. Lombroso, em 1876, defendia que a criminalidade era um fenômeno físico e hereditário, de manifestação inevitável, ao referir-se a famílias “em cujo seio as crianças apareciam predestinadas ao crime, quando não às psicoses, ao suicídio ou à morte em tenra idade, e tudo resultante de intoxicações ou infecções contraídas, muitos anos atrás, por seus antepassados.” (Lombroso, 1876, apud Moraes, p.17)
A partir dos anos 1920, surge um novo discurso científico que acredita na possibilidade de reverter a degeneração do povo mestiço através dos princípios da Higiene. O discurso higienista propõe-se assim a corrigir o primitivismo de raças e grupos sociais através da higiene e da educação. A crença na degeneração da raça continua presente, mas o higienismo, afastando-se da tese darwinista social da existência de raças definitivamente inferiores e superiores, adota uma concepção evolucionista das raças humanas e propõe remédios que estimulem a evolução das raças que se encontram em estágios evolutivos inferiores. Ainda que os mestiços continuassem sendo vistos como degenerados, era possível tirá-los desta condição não só pelo “influxo de sangue branco” que poderia criar “boas raças de mestiços” (Schwarcz, 1993, p.170), mas também por meio da educação.
Com o crescimento desordenado das cidades, a criminalidade aumenta. A questão criminal passa progressivamente da esfera policial, disciplinar, legal, para a esfera médica, higienista, o criminoso sendo tratado como resultado de taras e degenerações. O movimento higienista busca assim combater os desvios de caráter e degenerações próprias da mestiçagem, afirmando que “a população mestiça é doente” (Schwarcz, 1993, p.202), e propondo-se como um remédio possível para sua regeneração.
Contudo, a situação dos intelectuais brasileiros do final do século XIX e início do XX era incômoda, pois tentava adaptar em um país claramente miscigenado teorias raciais que colocavam em risco o próprio projeto de civilização, modernidade e desenvolvimento que o país ansiava. Em outras palavras, essa situação os levou a uma aporia, pois as teorias que propagavam determinavam a impossibilidade do Brasil como nação, se prosseguissem com o trabalho impossível de limpar a raça de todo um povo miscigenado:

Incômoda era a situação desses grupos intelectuais, que oscilavam entre a adoção de modelos deterministas e a reflexão sobre suas implicações. (Schwarcz, 1993, p.240)

Machado de Assis certamente percebeu o absurdo da tese da imperfeição racial num país não-branco, no qual até mesmo boa parte da intelectualidade era mestiça. (Patto, 2000, p.114)

Essa situação atingiu seu apogeu nos anos 30, quando outras correntes de pensamento apontam para uma valorização do homem pela cultura e pela transmissão educacional, na valorização da cultura como aquilo que diferencia os homens dos animais. Essas teorias questionam o determinismo da herança biológica presente na natureza, concebendo o homem como um ser cultural.
Se correntes contrárias ao determinismo organicista já se faziam ouvir no Brasil dos anos 30, é com a chegada da II Guerra, com o genocídio dos judeus e com a limpeza étnica executada pelo regime nazista, que as teorias eugênicas realmente têm seu declínio.

 

4. Considerações Finais

Como vimos, as reflexões e afirmações de Moraes são atravessadas por uma teoria racial determinista, em alguns momentos, e evolucionista e higienista, em outros, teorias que atravessaram os mares atlânticos na segunda metade do século XIX, vindas dos grandes centros intelectuais europeus. Em terras tupiniquins encontraram um solo fértil para sua expansão, na tentativa de naturalizar as causas da desigualdade social. Mas a adaptação à brasileira das teorias raciais européias sempre se revelou problemática e paradoxal, pois procurava aplicar teorias eugênicas em um país miscigenado.
A partir do momento em que Moraes elenca as causas orgânicas da criminalidade, com sua pré-determinação e inevitabilidade, ao lado de fatores sociais, políticos e econômicos, há por um lado uma tentativa de naturalização das desigualdades sociais, que estariam assim fora do escopo da política humana. Colocando-os lado a lado, o autor sugere uma pré-determinação dos problemas sociais, uma incontornabilidade das condições materiais e da exploração do proletariado, a impossibilidade de erradicação da pobreza, do mesmo modo como trata o determinismo presente na hereditariedade. Se os pais são baixos, os filhos são baixos, e não há nada que se possa fazer; logo se os pais são pobres, os filhos são pobres, e não há nada que se possa fazer. A natureza determina a hereditariedade assim como deve determinar a pobreza e o caráter.
Por outro lado, podemos considerar que o livro de Moraes aponta também para uma mudança de perspectiva na análise da determinação da criminalidade, ao defender uma educação preventiva e medidas sócio-educativas curativas, que matizam sua concepção determinista. Assim, a tese de que “a criminalidade é uma doença” se metamorfoseia em “a pobreza é uma doença”, que desse modo teria uma “cura” possível através dos remédios provenientes do higienismo, do evolucionismo e da educação.  
Mesmo que Moraes aponte para possíveis saídas para o problema da criminalidade de crianças e adolescentes pobres, não podendo ser considerado um representante do darwinismo social ou da eugenia, suas idéias são atravessadas pelas teorias raciais dominantes na época, por uma visão negativa dos pobres e por uma certa naturalização da pobreza. É esta a ideologia que atravessa o texto, a da naturalização da desigualdade social, construída enfim para que a desigualdade se perpetue e para a manutenção de um regime de subserviência, herança de um passado escravocrata que a sociedade brasileira (ainda nos dias de hoje) tem dificuldade em abandonar.
Devemos ler Evaristo de Moraes para compreendermos a genealogia de nossas idéias atuais, para percebermos o pano de fundo histórico onde foram construídos nossos preconceitos, nosso modo de pensar, nossas atitudes. Vivemos em um universo criado a partir de categorias sociais herdadas, e que continuamos a perpetuar, quer se trate de “negros-escravos”, de “mestiços-degenerados”, ou de “pobres-criminosos”.
"Oficialmente, não se defende mais que a criminalidade é herdada, não se acredita mais na eugenia, na antropologia criminal e nas teorias raciais darwinistas sociais ou evolucionistas, mesmo que até hoje existam autores aqui e ali que continuem a propagar essas teses pseudo-científicas e anacrônicas (para dizer o mínimo), ancorados em não muito mais que seu próprio preconceito.
 Mas seria possível sermos isentos de preconceito? Apesar de defendermos a igualdade de direitos dos pobres e dos negros, de lutarmos contra o darwinismo social e a eugenia e de parecermos democráticos, é necessário estarmos atentos e vigilantes também aos nossos próprios preconceitos, pois construímos nossos pensamentos a partir de categorias sociais e culturais herdadas. Por isso, corremos sempre o risco de repetir seus efeitos de maneira alienada, tal qual um eco que continua a se propagar mesmo quando cessa a fonte do ruído.
 Por isso devemos ler Evaristo de Moraes: para localizarmos a fonte do ruído, e quem sabe assim conseguirmos deixar de propagar os seus ecos.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DARNTON, R. (1986). O grande massacre de gatos. E outros episódios da história cultural francesa. Rio de Janeiro: Graal.
FAUSTO, B. (1994). História do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo Fundação do Desenvolvimento da Educação., 1997, 5ª. edição.
LACAN, J. (1969/1970). O Seminário, Livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.
MORAES, E. (1916). Criminalidade da Infância e da Adolescência. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1927, 2ª. edição.
PATTO, M.H.S. (2000). Teoremas e cataplasmas no Brasil Monárquico. In: Patto, M.H.S. Mutações do cativeiro: escritos de psicologia e política. São Paulo: Hacker / Edusp.
SCHWARCZ, L. M. (1993). O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras.


[1] Esse é um livro antigo, antiguidade que a própria ortografia denuncia. Por isso, tomamos a liberdade de citá-lo atualizando a grafia para facilitar a leitura (por ex., pathologia por patologia).
[2] Os grifos são nossos.
[3] Metonímia: figura de linguagem na qual toma-se a parte pelo todo. Toda série de conjuntos é metonímica, pois toma elementos que se repetem entre grupos distintos, aquilo que eles têm em comum, e torna os grupos equivalentes, sendo explicados através das mesmas propriedades e leis, ignorando o todo, ou seja, aquilo que diferencia os elementos do conjunto. A metonímia é a característica de toda classificação: ao homogeneizar os elementos de um grupo, apaga suas singularidades e as diferenças entre eles.
[4] O Outro (com maiúscula), para a psicanálise lacaniana, é esta estrutura simbólica que nos antecede e nos ultrapassa, caldeirão simbólico de onde tiramos nossas idéias, palavras, crenças. Pode ser entendido também como a sede da linguagem, ou da cultura.
[5] Gobineau, A. (1853). Essai sur l’inegalité des races humaines. Paris, Gallimard-Pleiade, 1983.