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Estação da Luz, em São Paulo: medidas higienistas na cracolândia |
Evaristo de Moraes foi um importante jurista brasileiro de grande
projeção entre 1890 e 1930 e considerado um dos fundadores do Direito Penal
brasileiro. Sua produção intelectual estende-se por mais de 30 livros
publicados entre o final do século XIX e o começo do XX, nos quais se revelou
um dos grandes cientistas sociais do Brasil pós-escravocrata, em obras que
tratam de assuntos diversos como a escravatura, a infância, a adolescência, a
prostituição, a criminalidade, a psicologia criminal, a patologia social. Ainda
hoje é referência em assuntos jurídicos relativos à criminalidade e à
legislação específica sobre crianças e adolescentes.
Algumas das concepções de Evaristo de Moraes sobre a infância e a
adolescência partilham da mesma ideologia do primeiro Código de Menores, de
1927, de autoria do jurista Mello Mattos. No
centro de suas posições sobre esse tema estava a defesa do tratamento jurídico
diferenciado para adultos e
crianças, de uma concepção não punitiva das questões criminais da infância, mas
sócio-educativa. Por outro lado, este Código de Menores tinha um caráter
discriminatório, pois associava a delinquência à pobreza, motivo pelo qual as
crianças de famílias de baixa renda deveriam ser tuteladas pelo Estado.
Passados quase 100 anos, não é difícil encontrar em seu texto as marcas
de um totalitarismo científico, principalmente à luz de autores que nos ajudam
a desvelar as ideologias subjacentes a teorias e concepções e que nos ensinam
que é preciso datar as idéias, contextualizá-las, para que possamos entender suas
relações com a realidade histórico-social.
Para apreendermos o que o texto de Moraes nos ensina para além de suas
concepções, devemos descobrir o que subjaz a cada linha, a cada palavra, a cada
uma das centenas de citações. Moraes não fala por si só, mas fala de dentro de
seu tempo, do “caldeirão simbólico” em que estava mergulhado. É este caldeirão
que pretendemos resgatar aqui, através da análise de um de seus textos.
Dividimos nossa análise em três partes: o texto, a forma e o contexto, seguidas
das considerações finais.
1. O Texto
Em
Criminalidade da infância e da adolescência, de 1916
, Moraes tece uma articulação entre diferentes campos científicos que tomam como objeto a criança e o adolescente: o direito, a medicina, a psicologia, a educação. Era forte, à época, a influência do discurso médico no campo das ciências jurídicas, que passam a tratar a criminalidade como uma doença de base orgânica. Assim sendo, desde o primeiro parágrafo encontramos a tese, que irá atravessar todo o livro, ãs vezes de maneira explícita, às vezes de maneira velada, segundo a qual a criminalidade é uma doença transmitida, como as características físicas, por herança genética de características morais e intelectuais, desvios e vícios do espírito. Diz ele:
A mesma lei preside à transmissão dos atributos físicos e à
transmissão das qualidades morais e intelectuais. (p.12)
A influência da
hereditariedade nervosa, alcoólica, sifilítica,
tuberculosa, reflete na raça.
(p.16)
(...) casos de tendência inata e fatal para o crime...
(p.28)
(...) meninos e
meninas com tendências irresistíveis
para a deambulação, dominados por incoercível
impulso, que os leva a
abandonar a casa paterna, sem motivo,
e às vezes sem destino. (p.40)
Moraes defende a hereditariedade do caráter, da
predestinação ao crime dos filhos de pais “degenerados”. Ao mesmo tempo,
defende também que fatores sociais determinam a criminalidade, passando do
campo biológico ao campo social. Ou seja, mesmo que ele sustente que a
criminalidade tenha uma causa possível nos fatores orgânicos e hereditários,
ele diz:
(...) desorganização da família e a má influência diretamente exercida em certos meios familiares.
(p.28)
(...) a maior
parte dos desvios criminosos dos menores são devidos à má influência da família ou do meio
em que foram educados. (p.30)
Assim, defende que causas sociais, ou a má influência
exercida pela desorganização da família e do meio, também seriam fatores determinantes
da criminalidade. Mas o “social” a que o autor se refere ainda é representado
somente pela família, e não pelas condições econômicas, sociais e políticas que
determinam as condições da vida familiar. Deste modo, poderíamos dizer que a
causa “social” continua sendo individual, pois o problema passa a ser dos
membros da família tomados individualmente, ou tomados como um grupo doente, não
inseridos na realidade social.
O autor refere-se a “taras”, a “viciosidade moral”, a “hereditariedade
nervosa”, a “hereditariedade alcoólica”, a “tendência inata e fatal para o
crime”. Ou seja, segundo Moraes, a criança criminosa nasce criminosa por conta
de um determinismo biológico, não se torna criminosa. Ao lado das explicações
organicistas encontramos também determinantes ambientais para explicar as
causas da criminalidade: as más influências, a desorganização da família, a má
educação, o alcoolismo aprendido. Ou seja, a criança criminosa pode não nascer
criminosa, mas tornar-se criminosa por conta das más condições em que é criada
e educada.
Em uma primeira leitura, devemos estar advertidos de que essas explicações não visam à complementação
uma da outra, como poderíamos pensar, mas são contrárias uma à outra. Moraes
diz que a criança nasce com tendências inatas para a delinqüência, e depois diz
que não se nasce vicioso, mas viciável. Essa é uma contradição importante em
seu texto, pois parece que o autor defende concepções contrários não para
elencar as diversas explicações possíveis das causas da criminalidade, mas
porque ele percebe a insuficiência e a contradição de suas explicações, passando
de uma à outra para tentar tapar os buracos das teorias que ele mesmo percebe
insuficientes, em uma costura impossível.
Por outro lado, podemos fazer outra leitura dessa suposta “contradição”, agora
como uma mudança de perspectiva adotada pelo autor a partir das aporias que ele
mesmo encontra nas teorias organicistas da criminalidade. Assim, podemos
considerar que Evaristo começa seu livro elencando as causas orgânicas da
criminalidade porque estas eram consenso na época, mas parte para as causas
sociais da criminalidade por perceber que as primeiras não dão conta da
explicação do problema pelas aporias que contém. Desse modo, verificamos que ao
longo do texto há uma certa problematização da questão, ao afastar-se tão
somente das causas orgânicas, e incluir as desigualdades sócio-econômicas, as
más condições de moradia, o excesso de trabalho, a falta de oportunidades da
classe trabalhadora, como possíveis causas da criminalidade.
Se considerarmos essa mudança de perspectiva como um avanço na análise
que faz o autor, percebemos de outro lado um recuo na finalidade que dá à
questão, posto que Moraes é atravessado por outra característica de seu tempo,
que dá o tom da maioria das idéias apresentadas quanto à criminalidade na
infância: a inevitabilidade de seu aparecimento. Ou seja, ela é uma teoria
determinista:
Pode o filho de um alcoólico
e de uma prostituta sifilítica não apresentar manifestações sifilíticas, nem
mostrar tendência ou predisposição para o alcoolismo; mas, quase
necessariamente, será uma criatura enferma, fraca de corpo, débil de
espírito, menos preparada para a luta pela vida, requerendo cuidados especiais
de tratamento e de educação. (p.14)
Como fator individual, atua
o alcoolismo por outra forma, isto é, diretamente, determinando a
delinquência infantil e juvenil. (p.21)
(...) casos de tendência
inata e fatal para o crime... (p.28)
O autor elenca as causas orgânicas e “sociais” (reduzidas à família) da
criminalidade, e vai construindo relações diretas entre elas até chegar à
pobreza. Assim, se um pobre comete um crime, a pobreza é, em última instância, a
causa da criminalidade, o que significa afirmar que todo pobre carrega o germe
do crime. Esse determinismo atravessa o texto como axiomas incontestáveis. As
qualidades morais e intelectuais das classes pobres conteriam naturalmente uma
predisposição ao vício, ao alcoolismo, à deambulação, ao abandono, ao mau
exemplo, aos maus tratos. Ao relacionar pobreza com degeneração orgânica e esta
com criminalidade, o autor endossa as teses da Eugenia, dominantes naquele período.
Desse modo, Moraes executa um deslocamento metonímico
ao longo do livro: dos criminosos ele passa às prostitutas, aos alcoólicos, aos
operários, aos pobres, para explicar a criminalidade. No caso da classe
operária, diz ele: “incapazes, por exemplo, são os pais operários” (p.32),
“incapazes de educar os filhos” (p.33) na “promiscuidade malsã das moradias
pobres” (p.35). Mesmo que Moraes consiga perceber os fatores econômicos,
sociais e políticos nos quais está inserida a classe trabalhadora, tentando
compreender os possíveis efeitos do excesso de trabalho, das más condições de
moradia, da necessidade de reestruturação de políticas públicas que
possibilitem uma melhor condição de vida aos pobres e miseráveis, a perspectiva
que ele encontra é determinista, pois sobrepõe o excesso de trabalho à produção
de degenerados, ou seja, “todo pobre que trabalha em excesso gera filhos
criminosos”.
Mesmo que Moraes mostre nestas passagens certa sensibilidade às
dificuldades impostas pela pobreza, ele toma como parâmetro a concepção
burguesa de família normal, fortalecendo assim estereótipos e preconceitos
contra os pobres:
A criança nascida de pais
debilitados pelo excesso de trabalho, quais são os operários,
pode ter o aspecto comum de todas as crianças, parecendo, aos olhos dos
inexpertos, sadia; mas provavelmente se mostrará pouco apta, inferior
aos de sua idade, difícil de educar, propensa à
ociosidade e às sugestões dos criminosos. (p.14)
É erro acreditar que a miséria
somente arrasta ao crime por causa da necessidade, da fome. A miséria
é grande geradora de criminosos porque é grande geradora de degenerados.
(p.15)
Incapazes, por exemplo, são
os pais operários, que por extrema necessidade têm de abandonar a casa logo nas
primeiras horas do dia, deixando as crianças sem vigilância, entregues umas às
outras ou aos vizinhos mais ou menos indiferentes. (p.32)
(...) a promiscuidade
malsã das moradias pobres. (p.35)
À noite, nem sempre
recolhendo cedo, as lamentáveis criaturinhas são constrangidas à
revoltante promiscuidade, dormindo, freqüentemente, em uma só esteira toda a
família. (p.36)
O autor defende a instrução pública primária
obrigatória como recurso preventivo e as prisões correcionais como recurso disciplinar
curativo da criminalidade das crianças e adolescentes. As idéias de Moraes
sobre a Educação, no que tange à prevenção e correção, escapam por um breve
momento do determinismo que atravessa a maior parte de suas idéias, ao tratar
dos atos infracionais das crianças e adolescentes não como um caso de polícia,
mas como um caso de educação, abrindo uma possibilidade social e cultural que
escapa do determinismo natural:
Em
relação a esses pequenos entes inexpertos, não se trata de fazer executar pena
ou castigo, mas sim de lhes dar educação, com o fim de colocá-los em
circunstâncias de ganharem honrada e honestamente a vida, e de serem úteis à
sociedade, em vez de constantemente a prejudicarem. (p.96)
Ele considera o menor como um ser em desenvolvimento a
ser protegido, e não a ser punido, propondo uma substituição das medidas de
punição em medidas de proteção e de tutela educativa. Na separação de menores e
adultos quanto à aplicação de medidas correcionais, a privação de liberdade dos
menores deveria ser feita em estabelecimentos de educação ou em escolas de
reforma ou reformatórios. A crença era a de que a educação correcional pudesse
ter êxito, sem deixar restos, como se a causa da delinqüência fosse – novamente
– individual, e o tratamento-correção pudesse resolver o problema se aplicado
aos indivíduos, como se eles fossem os responsáveis pela violência social da
qual são vítimas. Mesmo assim, ao analisar a situação do ensino público, Moraes constata
que entre a teoria e a prática havia um abismo que impedia o ideal educacional de
ser efetivado:
Efetivamente,
por toda parte se viu que os progressos na instrução literária não obstavam aos
progressos da criminalidade (...) Chegou-se até a atribuir às grandes escolas
públicas, em cujas salas se aglomeram centenas de alunos, certa influência no
incremento dessa apavorante criminalidade. (p.44)
Verificamos que a situação da Educação brasileira não
mudou muito, pois a política de desamparo e abandono por parte da administração
pública é historicamente determinada. Não bastam as inúmeras reformas
educacionais feitas por sucessivos governos, posto que elas somente reformam a
forma (e não as causas), a grande maioria delas destinada a apagar de maneira
cínica as estatísticas de evasão e repetência. Infelizmente, a educação ainda não
visa à instrução e à emancipação política das classes pobres, pois sua falta de
instrução interessa de maneira perversa às classes dominantes, para a
manutenção de uma política de subserviência que o Brasil escravocrata nunca
conseguiu abandonar. Desse modo, Moraes denuncia que a educação como prevenção,
propiciada por um ensino público depauperado, pode contribuir para aumentar –
ao invés de diminuir – a criminalidade.
Novamente, Evaristo nos indica os determinantes
sociais que se escondem por trás de suas análises muitas vezes individualizantes
do problema. Como a educação pública não tem cumprido seu papel social, ele
defende uma educação escolar específica aos pobres, moralizadora e
técnico-profissionalizante, com vistas a tornar essas crianças “socialmente
aproveitáveis” (p.52).
Com o advento das máquinas e da crescente
industrialização do começo do século, Moraes defende que aos capitalistas
interessa “o operário-produtor, apenas capaz de juntar uma força consciente às
forças mecânicas e automáticas da engrenagem” (p.47). A educação
técnico-profissionalizante que o autor defende tem por objetivo a submissão das
classes operárias, não visa à emancipação do homem com relação às condições nas
quais está inserido, para não enfrentar nem modificar as condições objetivas de
desigualdade social:
A
educação, dada nos estabelecimentos, deve corresponder, nas suas condições,
àquela ministrada às classes operárias, isto é, deve ter como
fundamento um ensino ao nível das escolas elementares, a maior
simplicidade na alimentação, no vestuário e no alojamento, e,
sobretudo, a persistência e o maior cuidado nas questões de trabalho.
(...) para se preparar convenientemente para o
futuro, que com maior probabilidade lhes esteja destinado. (p.97)
Mais do que programas educacionais diferentes para alunos
diferentes, ele defende uma classificação sistemática dos alunos por meio de
testes de inteligência, segundo as idéias de Binet, “tendente à separação dos
inadaptáveis às condições gerais do ensino” (p.52). Ou seja, ele recomenda que
se classifiquem as crianças para segregar, pois os “anormais ou degenerados”
constituem fator de desordem e de corrupção.
Assim, o projeto educacional para as classes pobres,
segundo Moraes, teria dois eixos: a adaptação, para que continuem sendo
operários e conformados, e a correção, que responsabiliza o indivíduo e quer
regenerá-lo para o convívio numa sociedade supostamente garantidora de
igualdade de oportunidades em função das aptidões naturais de cada um.
Embora mencione os testes psicológicos, prescreve uma
avaliação médica das crianças delinqüentes antes de serem encaminhadas à justiça.
À Medicina caberia avaliar os infratores e explicar a criminalidade. O Direito
ficaria encarregado unicamente de definir e autorizar as medidas correcionais
cabíveis a serem executadas pela Educação, responsável pela prevenção, correção
e adaptação.
2. A Forma
Se “queimarmos” Evaristo de Moraes por causa de
muitas de suas idéias preconceituosas, vamos perder a grande oportunidade de aprender
sobre o período em que ele escreve, sobre a relação entre as idéias e a
realidade social em que são produzidas, e sobre os legados do passado ao
presente.
Segundo o historiador norte-americano Robert Darnton
(1986) sobre a leitura de textos antigos,
Nada é mais fácil do que
deslizar para a confortável suposição de que os europeus pensavam e sentiam, há
dois séculos, exatamente como o fazemos agora. (...) Precisamos ser
constantemente alertados contra uma falsa impressão de familiaridade com o
passado, de recebermos doses de choque cultural. (Darnton, 1986, p. 15)
Uma saída possível, segundo ele, encontra-se em um
método de pesquisa conhecido como “história de tendência etnográfica”, ou
História das Mentalidades:
A maioria das pessoas tende
a pensar que a história cultural aborda a cultura superior, a cultura com C
maiúsculo. (...) Enquanto o historiador das idéias esboça a filiação do
pensamento formal, de um filósofo para outro, o historiador etnográfico estuda
a maneira como as pessoas comuns entendiam o mundo. Tenta descobrir sua
cosmologia, mostrar como organizavam a realidade em suas mentes e a expressavam
em seu comportamento. (...) Então, os historiadores deveriam ser capazes de
perceber como as culturas formulam maneiras de pensar, mesmo no caso dos
grandes pensadores. Um poeta ou um filósofo pode levar a linguagem aos seus
limites mas, a certa altura, vai deparar-se com a estrutura externa da
significação. (Darnton, 1986, p. 14)
Em seu livro O
Grande Massacre de Gatos (1986), Darnton pesquisa os arquivos do Antigo
Regime francês, realizando uma análise dos textos de grandes pensadores, como
Diderot e Rousseau, lado a lado com textos de contadores de histórias
camponeses e dos plebeus matadores de gatos. Abandonando a diferenciação
habitual entre cultura de elite e cultura popular, ele mostra como “os
intelectuais e as pessoas comuns lidavam com o mesmo tipo de problema” (Darnton,
1986, p. 18). Esse mesmo tipo de problema seria essa “estrutura externa
de significação”, ou seja, a estrutura simbólica comum a todos, histórica,
datada, localizada, “caldeirão simbólico” de onde tiramos palavras, conceitos, idéias
e crenças, para explicar o mundo, para construir nossas teorias, simbolismo do
qual somos também reféns, estrutura que nos antecede e nos ultrapassa.
As idéias de Moraes certamente influenciavam as
opiniões e práticas da época, dada a sua pertença de classe na rígida
hierarquia social brasileira, de onde provinham os cientistas da época, eles
também atravessados pelo imaginário cultural e social do início do século,
tornando-se receptor e emissor de teses que, antes mesmo que fossem dele, eram
de Outro
.
Ou seja, ele também estava imerso em um caldeirão simbólico que o antecedia e o
ultrapassava. Assim, podemos supor que o imaginário cultural desvelado por
Evaristo de Moraes no terreno jurídico pode ser entendido como efeito
de um imaginário que atravessava a cultura de sua
época de maneira generalizada, atingindo também o campo das instituições científicas,
como as instituições médicas e educativas.
Criminalidade da
infância e da adolescência impressiona pela erudição e pelas inúmeras
citações em português, francês, italiano, espanhol, alemão, inglês, e de dados
estatísticos de diferentes origens: Londres, Estocolmo, Roma, São Petersburgo,
Paris, Amsterdam, Turim, Washington. Impressiona e ao mesmo tempo intimida, convocando-nos a concordar com ele pela forma com que
suas afirmações são avalizadas, pois as transcrições em tantas línguas
estrangeiras e as estatísticas produzidas em grandes centros urbanos convocam o
leitor a concordar com as teses apresentadas.
Encontramos nesse texto um importante documento
histórico do império da ciência positiva naquele início de século brasileiro, de
como ela se organizava na estrutura de um texto “persuasivo” que obturava o
espaço da dúvida, da incógnita, do questionamento, por meio de afirmações
impositivas porque alçadas à condição de verdades e certezas inquestionáveis:
(...) expor as causas que
lhe assinalam os competentes (...) (p.11)
(...) a ninguém é
lícito, no estado atual dos conhecimentos humanos, negar
essa influência hereditária. (p.12)
(...) se comprovou, à
evidência, que a mesma lei preside à transmissão dos atributos físicos
e à transmissão das qualidades morais e intelectuais. (p. 12)
Já está mais do que sabido,
desde a publicação da obra de Morel (...). (p.13)
Está, atualmente, averiguado,
(...)”p. 15
Em sustentação de tal verdade
axiomática, aproveitou Laurent (...) esta frase de alta precisão
científica (...). (p.16)
Em substancioso e bem
documentado capítulo, demonstrou ele que (...). (p.22)
Descreve Stanley Hall, de
acordo com eminentes especialistas (...). (p.24)
[Georges Vidal] (...) diz, com
verdade, que a experiência tem mostrado (...). (p.30)
Percebe-se que a estrutura positiva que sustenta o texto inclui uma escolha
precisa das palavras, das afirmações confirmadas por dados numéricos e pela
suposta competência de pesquisadores estrangeiros, com vistas à produção da
“obviedade”. Essa “forma” dada ao texto desvela a própria concepção de ciência
dominante no período: como uma verdade inquestionável, porque sempre baseada em
fatos que cumpriam a função de eliminar a dúvida quanto à natureza do
conhecimento produzido, fosse dos cientistas, fosse dos profissionais que se
dedicavam ao assunto.
Podemos considerar que esta concepção de rigor do conhecimento científico
é um instrumento de dominação que revela “o lugar da ciência moderna na esfera
do poder”, no projeto político de “tudo conhecer para tudo controlar” (Patto,
2000, p.6). Ela está a serviço da dominação dos pobres, dos negros e dos “primitivos”
pela episteme, como justificativa ilustrada ao processo colonizatório.
Com a ascensão do modo capitalista de produção, o saber torna-se
propriedade intelectual do senhor, e o proletário é expropriado de seu saber no
processo de industrialização. Ou seja, após ter sido despojado dos meios de
produção, com a industrialização concentrando as máquinas nas mãos dos
senhores, o artesão e o aprendiz transformados em operários foram despojados de
seu savoir-faire, principalmente a partir da lógica industrial da “linha
de produção”. Ao fragmentar a produção, o saber operário foi também
fragmentado, o que facilitou a dominação pela episteme. Lacan resume
isto nos seguintes termos: “o proletário não é simplesmente explorado, ele é
aquele que foi despojado de sua função de saber” (Lacan, 1969/70, p.140).
As teses de Moraes são representantes do “caldeirão simbólico” que dominava
as ciências e o cotidiano, e submetia pobres, negros e operários na Primeira
República brasileira. É interessante conhecer um texto do início do século que
se vale de Lombroso e Morel e de discípulos
desses expoentes do chamado “racismo científico” e do “darwinismo social”,
cujas teses eram hegemônicas no mundo ocidental na virada do século passado.
3. O Contexto
Em O espetáculo das raças
(1993), Lilia Schwarcz traça um panorama do imaginário cultural e simbólico do
Brasil entre 1870-1930 que nos ajuda a contextualizar as teses de Moraes. Nessa
época, tem início uma produção intelectual influenciada por teses produzidas nos grandes centros europeus, sendo
aqui adaptadas pelos filhos da aristocracia que traziam do além-mar as
novidades científicas. Impulsionadas pelo crescimento econômico originado da
produção cafeeira, as elites brasileiras importavam não só idéias, mas também
hábitos, costumes e estilos de vida. Nossos intelectuais queriam que o país
fosse, aos olhos das nações estrangeiras, mais do que um lugar exótico e rico
de recursos naturais que atraía naturalistas e exploradores, mas uma nação
moderna, civilizada, industrial, lugar de progresso da ciência e da técnica.
A sociedade brasileira no começo do século era rigidamente hierarquizada.
Os filhos dos oligarcas locais formavam-se em faculdades européias e importavam
dos grandes centros europeus o fervilhar científico impulsionado pela
industrialização crescente. Em terras brasileiras, essa produção intelectual
européia transformava-se em uma caricatura à brasileira de um bovarismo em
pleno funcionamento. Saíram desse segmento os
primeiros intelectuais brasileiros, ex-escravocratas, latifundiários, e
posteriormente, industriais. E brancos. Do outro lado da sociedade, negros
recém-libertos, mestiços, trabalhadores nas lavouras e na indústria, quase
todos com pouca ou nenhuma escolarização. A classe média urbana era diminuta,
composta basicamente pelos trabalhadores estrangeiros que imigraram para o país
para substituir a mão de obra escrava nas lavouras e para se tornarem pequenos
comerciantes.
No bojo da disseminação das teorias raciais em voga,
que viam o mestiço como um ser degenerado, o Brasil era considerado com
desconforto como um país tipicamente miscigenado, como um “festival de cores”
(Aimard, 1888, apud Schwarcz, 1993, p.11), como uma “sociedade de raças
cruzadas” (Romero, 1895, apud Schwarcz, 1993, p.11), face do país que causava
preocupação às nossas elites econômicas e intelectuais.
O processo de cruzamento entre as raças resultaria,
segundo essas teorias, em “degeneração do caráter” e “viciosidade moral”, o que
constituía um entrave ao desenvolvimento de um país miscigenado. No final do
século XIX, o conde francês Arthur de Gobineau, autor de um livro clássico
sobre a desigualdade entre as raças
,
considerava a população brasileira como “uma população totalmente mulata,
viciada no sangue e no espírito e assustadoramente feia” (
apud Schwarcz,
1993, p.13). As expressões utilizadas por Moraes, como “viciosidade moral”,
descendem de uma ciência racial que imperava na Europa e que fazia da
mestiçagem brasileira “uma pista para explicar o atraso ou uma possível
inviabilidade da nação” (Schwarcz,1993, p.13). Nesse cenário
, medidas eugênicas de aprimoramento da
raça começaram a ser vistas aqui como uma solução possível para o
desenvolvimento da nação. No I Congresso Internacional das Raças, ocorrido em
Paris, em 1911, o médico brasileiro João Batista Lacerda, então Diretor do
Museu Nacional, defendeu a seguinte tese: “
O Brasil mestiço de hoje tem no
branqueamento, em um século, sua perspectiva, saída e solução.” (apud
Schwarcz, 1993, p.11)
Com a abolição da escravatura, a população negra,
quase toda desempregada, inchava os centros urbanos. Neste momento, as teorias
raciais e o determinismo darwinista social são utilizados como legitimação da
nova desigualdade social:
Em
meio a um contexto caracterizado pelo enfraquecimento e final da escravidão e
pela realização de um novo projeto político para o país, as teorias raciais se
apresentavam enquanto modelo teórico viável na justificação do complicado jogo
de interesses que se montava. (Schwarcz, 1993, p.18)
As décadas seguintes à libertação dos escravos podem ser concebidas como o ápice deste movimento intelectual, no qual os homens de ciência de diferentes instituições - médicas, jurídicas, antropológicas, historiográficas - propunham-se a legitimar e manter intacta a hierarquia social, valendo-se de teorias (pseudo) científicas que vinham sendo usadas, desde o sécuo XIX, pelos países europeus imperialistas como justificativas teóricas para as suas práticas agressivas de dominação. (Schwarcz, 1993, p.30).
Contrariamente ao ideário iluminista que inspirou a Revolução Francesa e
que afirmava o princípio da igualdade, as teorias raciais que surgem a partir
do século XIX buscam estabelecer correlações rígidas entre patrimônio genético,
aptidões intelectuais e inclinações morais individuais, tendo em vista avaliar
e selecionar as pessoas para segregar os inferiores. Há um progressivo
afastamento dos ideais humanistas em direção a um determinismo biológico das
tendências e capacidades de indivíduos, classes e raças. Desse modo, o século
XIX assiste ao nascimento e desenvolvimento da frenologia e da antropometria
como concepções e técnicas que permitiriam aos médicos determinar capacidades
intelectuais e tendências morais levando em conta o tamanho e a proporção de
atributos físicos como a conformação do crânio, o tamanho e o formato do nariz,
da testa, dos olhos, e as proporções entre as partes do corpo.
A eugenia surge também nesse contexto. Esta ciência, criada em 1883, na
Inglaterra, fundamentava a interdição da reprodução ou mesmo a eliminação de
membros das raças consideradas inferiores como meio de aprimorar as populações pela
seleção de características que garantissem o predomínio de uma raça pura ou
superior. As propostas eugênicas de “depuração da raça” não foram exclusividade
da Alemanha hitlerista. Antes dela, leis eugênicas de esterilização foram
introduzidas em vários países, como nos Estados Unidos, em 1919, na Suíça, em
1928, e na Dinamarca, em 1929. O racismo científico, que influenciou toda uma
geração de intelectuais brasileiros no começo do século XX, como Evaristo de
Moraes, era uma corrente dominante na comunidade científica ocidental da época.
Nas primeiras faculdades de direito brasileiras, em Recife e em São Paulo,
jovens intelectuais que se formam neste período propõem um rompimento com as
visões de mundo tradicionais, impregnadas de religiosidade, em benefício de uma
visão laica trazida por doutrinas que davam precedência ao conhecimento
científico como instrumento de progresso material e social. Uma nova concepção
do Direito, científica, aliada às ciências naturais, entre as quais uma
antropologia física de base biológica e evolutiva, está em construção no final
do século XIX. A partir dos estudos de antropologia criminal de Lombroso e
Morel, a lente dos especialistas desvia-se do crime em si para a análise do
criminoso. Lombroso, em 1876, defendia que a criminalidade era um fenômeno
físico e hereditário, de manifestação inevitável, ao referir-se a famílias “em cujo seio as crianças apareciam predestinadas
ao crime, quando não às psicoses, ao suicídio ou à morte em tenra idade, e tudo
resultante de intoxicações ou infecções contraídas, muitos anos atrás, por seus
antepassados.” (Lombroso, 1876, apud Moraes, p.17)
A partir dos anos 1920, surge um novo discurso científico que acredita na
possibilidade de reverter a degeneração do povo mestiço através dos princípios
da Higiene. O discurso higienista propõe-se assim a corrigir o primitivismo de
raças e grupos sociais através da higiene e da educação. A crença na
degeneração da raça continua presente, mas o higienismo, afastando-se da tese
darwinista social da existência de raças definitivamente inferiores e
superiores, adota uma concepção evolucionista das raças humanas e propõe remédios
que estimulem a evolução das raças que se encontram em estágios evolutivos
inferiores. Ainda que os mestiços continuassem sendo vistos como degenerados,
era possível tirá-los desta condição não só pelo “influxo de sangue branco” que
poderia criar “boas raças de mestiços” (Schwarcz, 1993, p.170), mas também por
meio da educação.
Com o crescimento desordenado das cidades, a criminalidade aumenta. A
questão criminal passa progressivamente da esfera policial, disciplinar, legal,
para a esfera médica, higienista, o criminoso sendo tratado como resultado de
taras e degenerações. O movimento higienista busca assim combater os desvios de
caráter e degenerações próprias da mestiçagem, afirmando que “a população
mestiça é doente” (Schwarcz, 1993, p.202), e propondo-se como um remédio
possível para sua regeneração.
Contudo, a situação dos intelectuais brasileiros do final do século XIX e
início do XX era incômoda, pois tentava adaptar em um país claramente
miscigenado teorias raciais que colocavam em risco o próprio projeto de
civilização, modernidade e desenvolvimento que o país ansiava. Em outras
palavras, essa situação os levou a uma aporia, pois as teorias que propagavam
determinavam a impossibilidade do Brasil como nação, se prosseguissem com o
trabalho impossível de limpar a raça de todo um povo miscigenado:
Incômoda era a situação desses grupos intelectuais,
que oscilavam entre a adoção de modelos deterministas e a reflexão sobre suas
implicações. (Schwarcz, 1993, p.240)
Machado de Assis certamente percebeu o absurdo da
tese da imperfeição racial num país não-branco, no qual até mesmo boa parte da
intelectualidade era mestiça. (Patto, 2000, p.114)
Essa situação atingiu seu apogeu nos anos 30, quando outras correntes de
pensamento apontam para uma valorização do homem pela cultura e pela
transmissão educacional, na valorização da cultura como aquilo que diferencia
os homens dos animais. Essas teorias questionam o determinismo da herança
biológica presente na natureza, concebendo o homem como um ser cultural.
Se correntes contrárias ao determinismo organicista já se faziam ouvir no
Brasil dos anos 30, é com a chegada da II Guerra, com o genocídio dos judeus e
com a limpeza étnica executada pelo regime nazista, que as teorias eugênicas
realmente têm seu declínio.
4. Considerações Finais
Como vimos, as reflexões e afirmações de Moraes são atravessadas
por uma teoria racial determinista, em alguns momentos, e evolucionista e
higienista, em outros, teorias que atravessaram os mares atlânticos na segunda
metade do século XIX, vindas dos grandes centros intelectuais europeus. Em
terras tupiniquins encontraram um solo fértil para sua expansão, na tentativa
de naturalizar as causas da desigualdade social. Mas a adaptação à brasileira
das teorias raciais européias sempre se revelou problemática e paradoxal, pois
procurava aplicar teorias eugênicas em um país miscigenado.
A partir do momento em que Moraes elenca as causas orgânicas da
criminalidade, com sua pré-determinação e inevitabilidade, ao lado de fatores
sociais, políticos e econômicos, há por um lado uma tentativa de naturalização
das desigualdades sociais, que estariam assim fora do escopo da política
humana. Colocando-os lado a lado, o autor sugere uma pré-determinação dos
problemas sociais, uma incontornabilidade das condições materiais e da
exploração do proletariado, a impossibilidade de erradicação da pobreza, do
mesmo modo como trata o determinismo presente na hereditariedade. Se os pais
são baixos, os filhos são baixos, e não há nada que se possa fazer; logo se os
pais são pobres, os filhos são pobres, e não há nada que se possa fazer. A
natureza determina a hereditariedade assim como deve determinar a pobreza e o
caráter.
Por outro lado, podemos considerar que o livro de Moraes aponta também
para uma mudança de perspectiva na análise da determinação da criminalidade, ao
defender uma educação preventiva e medidas sócio-educativas curativas, que matizam
sua concepção determinista. Assim, a tese de que “a criminalidade é uma doença”
se metamorfoseia em “a pobreza é uma doença”, que desse modo teria uma “cura”
possível através dos remédios provenientes do higienismo, do evolucionismo e da
educação.
Mesmo que Moraes aponte para possíveis saídas para o
problema da criminalidade de crianças e adolescentes pobres, não podendo ser
considerado um representante do darwinismo social ou da eugenia, suas idéias
são atravessadas pelas teorias raciais dominantes na época, por uma visão
negativa dos pobres e por uma certa naturalização da pobreza. É esta a ideologia
que atravessa o texto, a da naturalização da desigualdade social, construída
enfim para que a desigualdade se perpetue e para a manutenção de um regime de
subserviência, herança de um passado escravocrata que a sociedade brasileira
(ainda nos dias de hoje) tem dificuldade em abandonar.
Devemos ler Evaristo de Moraes para compreendermos a
genealogia de nossas idéias atuais, para percebermos o pano de fundo histórico
onde foram construídos nossos preconceitos, nosso modo de pensar, nossas
atitudes. Vivemos em um universo criado a partir de categorias sociais
herdadas, e que continuamos a perpetuar, quer se trate de “negros-escravos”, de
“mestiços-degenerados”, ou de “pobres-criminosos”.
"Oficialmente, não se defende mais que a
criminalidade é herdada, não se acredita mais na eugenia, na antropologia
criminal e nas teorias raciais darwinistas sociais ou evolucionistas, mesmo que
até hoje existam autores aqui e ali que continuem a propagar essas teses
pseudo-científicas e anacrônicas (para dizer o mínimo), ancorados em não muito
mais que seu próprio preconceito.
Mas seria
possível sermos isentos de preconceito? Apesar de defendermos a igualdade de
direitos dos pobres e dos negros, de lutarmos contra o darwinismo social e a
eugenia e de parecermos democráticos, é necessário estarmos atentos e vigilantes
também aos nossos próprios preconceitos, pois construímos nossos pensamentos a
partir de categorias sociais e culturais herdadas. Por isso, corremos sempre o
risco de repetir seus efeitos de maneira alienada, tal qual um eco que continua
a se propagar mesmo quando cessa a fonte do ruído.
Por isso
devemos ler Evaristo de Moraes: para localizarmos a fonte do ruído, e quem sabe
assim conseguirmos deixar de propagar os seus ecos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DARNTON, R. (1986). O grande
massacre de gatos. E outros episódios da história cultural francesa. Rio de
Janeiro: Graal.
FAUSTO, B. (1994). História do
Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo Fundação do
Desenvolvimento da Educação., 1997, 5ª. edição.
LACAN, J. (1969/1970). O Seminário, Livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.
MORAES, E. (1916). Criminalidade da Infância e da Adolescência. Rio de Janeiro: Livraria
Francisco Alves, 1927, 2ª. edição.
PATTO, M.H.S. (2000). Teoremas e cataplasmas no Brasil Monárquico. In:
Patto, M.H.S. Mutações do cativeiro:
escritos de psicologia e política. São Paulo: Hacker / Edusp.
SCHWARCZ, L. M. (1993). O
espetáculo das raças. Cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930).
São Paulo: Companhia das Letras.