23/01/2012

CAPS, um projeto entre o psíquico e o social





Procuramos descrever aqui uma maneira de entender o projeto Caps e uma maneira de colocar em prática esse entendimento, em especial no que se refere ao Caps infantil. Como cada CAPS é regionalizado, com projetos de base territoriais, cada CAPS constrói seu próprio projeto terapêutico. Propomos aqui uma leitura, a nossa, em 3 partes: I) considerações sobre o projeto Caps; II) sobre a equipe interdisciplinar; e III) sobre a organização da grade de atividades, entendida como uma conseqüência dos dois eixos anteriores.




I

Concebemos o Caps infantil como uma instituição ampliada, para tratamento de crianças e adolescentes com transtornos mentais graves, dificuldades importantes de socialização e adaptação ao convívio social. Porque ampliada? Porque o Caps se insere, dentro da história da Saúde Mental, como uma terceira via, nem só psíquica nem só social, mas entre o psíquico e o social. Ou seja, entre os atendimentos clássicos, ambulatoriais, com hora marcada, e os atendimentos socialiantes, herança do movimento anti-manicomial, de re-inserção da pessoa na cidade.

São muitas as diferenças entre esses diferentes modos de tratar: de um tempo limitado da consulta a um tempo expandido; do espaço fechado do consultório a espaços ampliados como a cozinha, a recepção, o corredor, o playground; do cuidado puramente medicamentoso a um cuidado que envolve também a linguagem e a socialização do paciente.

A partir dos anos 60 e 70, uma nova maneira de compreender o sofrimento mental surge na Itália, com Basaglia; na França, com Lacan e Mannoni; e na Inglaterra, com Laing. Psiquiatras e psicanalistas sugerem então uma relação entre a loucura e a exclusão nas sociedades modernas. Os manicômios, espaços de contenção e isolamento para tratar a doença mental, começam a ser questionados, e a relação do sujeito com o Outro se torna fundamental em sua dupla função: como uma forma de explicar a causa do sofrimento mental e também para indicar uma forma possível de tratamento. Ou seja, a relação com o Outro passa a ser entendida como a causa da doença e também como uma maneira de tratar a doença.

Essa nova forma de entender a doença mental sugere então que o convívio social deve ser retomado, que o louco fica mais louco ainda pelo seu isolamento do mundo, isolamento que vem das dificuldades do próprio doente (pelo seu corpo fragmentado, pela sua cabeça confusa, pela sua dificuldade de comunicação), e também pelas dificuldades das pessoas ao seu redor, da família e da sociedade, incapazes de suportar as crises do paciente, sua loucura, insensatez, esquisitice.

Seguindo essa forma moderna de tratar a doença mental, mais “socializante”, o nosso objetivo com o Caps passa a ser o de facilitadores da comunicação e da relação perdida, atuando como ponte entre o doente e o Outro. Nesse sentido, o objetivo maior do Caps é a inclusão, que pode ser entendida de dois modos: como um fim, efeito do trabalho, ou seja, ficar melhor para ser incluído, mas também como um meio, uma ferramenta clínica, ou seja, ser incluído para ficar melhor.

Porque esta forma de tratar a doença mental insiste na inclusão? Porque acredita que circular pela cidade ajuda o doente a estabilizar sua doença. Habitar o bairro, usar os elementos da cultura, como os jogos, brincadeiras, escola, auxilia o doente. Circular e se apropriar desta organização simbólica, presente na cultura, pode ajudar a criança e o adolescente desorganizados psiquicamente a se organizarem, porque esses elementos da cultura carregam a mesma organização simbólica presente na linguagem. Por isso, o efeito desta circulação pode ser terapêutico, na medida em que empresta ao sujeito uma organização externa à falta de organização subjetiva que ele apresenta, ajudando-o em suas relações cotidianas.

Por conta dessa visão socializante, o Caps é comumente confundido com um projeto social. Ora, o Caps não é um projeto social, ele é um projeto de saúde mental, que utiliza o social como uma ferramenta de tratamento, assim como os psicólogos utilizam a linguagem e os médicos utilizam os remédios. O Caps não existe para tapar os buracos políticos de descuido social, para arrumar trabalho e ocupação aos que adoecem por falta de trabalho, ou para dar comida aos que adoecem por fome. O Caps não existe para distribuir vale-transporte para a população de baixa renda: a distribuição de vale-transporte, assim como a comida e o trabalho, devem ser entendidos como ferramentas de tratamento. O nosso objetivo é criar em instituição um espaço que seja o mais parecido possível com a vida cotidiana, para propiciar o acesso aos elementos simbólicos presentes na comunidade, pois esses elementos simbólicos ajudam o sujeito, qualquer sujeito, a se organizar psiquicamente.

Muitas crianças, por conta de sua doença, ou por conta da doença de sua família e da sociedade, não podem circular pela rua, pela escola, ficam isoladas, escondidas em casa, sem acesso à escola, sem acesso aos jogos, brincadeiras, regras, e mesmo sem acesso ao contato com outras crianças. Sua doença se cronifica por conta deste não-acesso aos objetos do mundo, condição de todo processo de organização psíquica. Em suma, elas ficam privadas do contato com o Outro, que está presente em todo e qualquer elemento cultural compartilhado.

Por isso, oferecer espaços em que as crianças possam comer juntas, por exemplo, não visa matar sua fome, mas sim propiciar que a criança possa se organizar através dos elementos simbólicos presentes em uma refeição: “não se come com as mãos, mas com o garfo e faca. Depois de comer cada um tira seu prato e o lava com uma bucha com detergente, colocamos os pratos no escorredor, os talheres a gente também lava, as canecas ficam na primeira gaveta do lado direito da pia”.

Este é somente um exemplo dos elementos organizadores presentes em uma atividade cotidiana como uma refeição. Poderíamos pensar que estamos ensinando boas maneiras a essas crianças, mas a etiqueta e a adequação não são nossos objetivos com essa atividade. Essa proposta tem a função de emprestar ao psicótico, freqüentemente isolado em rituais e estereotipias particulares, um elemento compartilhado por todos, para que ele possa se reconhecer também como integrante de um mesmo código social e cultural, e assim se ver e ser realmente incluído. Esta é uma maneira de entender e praticar a inclusão: ao compartilhar elementos simbólicos comuns, presentes na vida cotidiana, o sujeito pode se reconhecer como representante e integrante da sociedade, ao compartilhar uma refeição, uma brincadeira, um jogo, uma linguagem comum.

Nesse sentido, a proposta de tratamento que sugerimos insiste na criação de um espaço e de um tempo em que as crianças e adolescentes desestruturados psiquicamente possam fazer uso de elementos simbólicos cotidianos para que os ajudemos a se organizar. Desta forma, pensamos que espaços como a cozinha, sala de jogos, sala de tv, sala de videogame, quadra de esportes, podem servir de suporte para atividades cotidianas que têm como objetivo o tratamento da desorganização psíquica e do sofrimento mental.

II

Os técnicos, assim, independentemente de sua formação acadêmica, passam a ter uma função comum: a de representantes da cultura dos homens, representantes da linguagem, aqueles que podem reconhecer o ato do sujeito como um discurso, e incluí-lo em um código comum, compartilhado. Emprestam seus corpos ora como sujeitos ora como objetos, emprestam seus desejos como homens e mulheres, suas experiências de vida como exemplos de amarração do real, do simbólico e do imaginário. Essa passa a ser a principal função dos técnicos dentro de um Caps. Não como psicólogos, nem como fonos, nem como enfermeiras, mas como homens e mulheres, com suas amarrações particulares, com seus diferentes estilos de humanidade.

A importância de termos uma equipe onde homens e mulheres se doam como representantes da cultura, da humanidade, onde os profissionais não vomitam seu saber acadêmico pelos corredores, reside principalmente na importância da desalienação do sujeito ao saber do Outro, desalienação de um saber externo que aprisiona, objetifica o sujeito e o desumaniza. A herança psiquiátrica deixou como seqüela maior esta objetificação do doente através de uma alienação ao saber médico, a uma redução de sua humanidade ao seu organismo, que ninguém, a não ser o médico, teria condições de decifrar. E temos no Caps vários exemplos em que isso acontece: várias mães de pacientes relatam que o médico disse que seu filho é retardado, que seu retardo é genético, e que por isso ele nunca aprenderia nada, e então não adiantaria freqüentar uma escola. Esse saber médico ainda é um obstáculo que impede ao paciente a possibilidade de se tratar, porque o que o médico diz marca seu destino como doente para o resto da vida.

Por isso a criação de uma nova forma de tratamento, em que nenhum dos técnicos vai alienar o paciente em seu saber específico, acadêmico, seja ele qual for: psiquiatria, psicologia, terapia ocupacional, fonoaudiologia, etc. Passamos a dar voz aos pacientes para que eles falem de sua doença, para que possam construir seu mundo com a ajuda do Outro, e não mais que esse Outro construa seu destino em seu lugar.

Então, acabar com a especificidade dos saberes técnicos dentro de um Caps responde a essa mudança, de um retorno do saber ao sujeito, de um saber técnico alienante a um saber do sujeito sobre seu próprio sofrimento e sobre seu mundo simbólico.

Mas então qual seria o ganho em termos uma equipe interdisciplinar, se não aproveitamos a especificidade da formação acadêmica de cada técnico?

Essa questão gerou um número grande de desvios e mal entendidos nos Caps, a partir de um entendimento equivocado da proposta, pois a enfermeira passou a fazer psicoterapia, o psicólogo passou a se meter na medicação, a cozinheira faz grupo de mães, e o chefe administrativo acha que pode fazer encaminhamentos sem passar pela equipe técnica. Ou seja, todo mundo se crê apto a fazer qualquer coisa, mesmo sem saber direito o que está fazendo.

Ora, esta é uma deformação da idéia original. Acabarmos com as especificidades dos técnicos em um Caps responde a uma não-alienação do paciente ao saber técnico e acadêmico, principalmente ao saber médico. Isso não quer dizer que uma avaliação diagnóstica, por exemplo, possa ser realizada por qualquer pessoa da equipe: ela deve ser realizada pelo psicólogo. Quando estivermos realizando o trabalho do cotidiano, esse que apresentamos anteriormente, de humanização das crianças, servindo como modelo, como homens e mulheres, aí sim entra a não-especificidade técnica da equipe, aí sim entra o segurança servindo de modelo masculino para alguns jovens, a importância da faxineira em pegar uma criança pela mão e fazê-la limpar o chão que acabou de sujar, a importância da cozinheira ensinando uma criança a lavar sua caneca após tomar leite.

Mas a psicoterapia deve continuar sendo feita pelos psicólogos e o grupo de facilitação pedagógica deve continuar sendo feito pela pedagoga. Isso não significa que as discussões clínicas não possam contemplar embates interdisciplinares, e eles são especialmente ricos, principalmente com os médicos, quando a equipe começa a questionar o porquê deste medicamento e não o outro. Mas enfim, as especificidades dos técnicos têm lugar nas atividades ditas “clínicas”, fundamentais ao tratamento, e nas atividades de “convivência” ou “humanizantes”, aí sim os técnicos devem se despir de todo saber acadêmico, e estarem investidos simplesmente de um desejo não-anônimo, para poderem servir de modelo de homem e mulher e de representantes da cultura.

III

Assim concebemos a construção da Grade de Atividades no Caps, procurando contemplar essas duas vertentes do tratamento. Temos, de um lado, as “atividades clínicas”, e de outro, as “atividades de convivência”. Nas atividades clínicas temos o Grupo de mães, o Grupo de Adolescentes, o Grupo dos Pequenos, o Grupo de Consciência Fonológica, os atendimentos individuais, o Grupo de Jardinagem, o Grupo de T.O., entre outros. Essas atividades têm objetivos terapêuticos que são estabelecidos a partir do entendimento técnico-acadêmico de cada um dos diferentes profissionais, e aqui entra a importância da especificidade técnica de cada um dos membros da equipe.

Nas atividades de convivência não são estabelececidos objetivos terapêuticos, pois a idéia é proporcionar às crianças circularem livremente pelo Caps, junto das outras crianças e dos técnicos, em atividades de café da manhã, almoço, jogos, brincadeiras, videogame, bola, corrida. As atividades de convivência não estabelecem objetivos terapêuticos, mas elas causam efeitos terapêuticos, pois todas essas atividades, apesar de livres, são atividades estruturadas, que ajudam o paciente a se organizar. Jogar videogame livremente é uma atividade estruturada, pois cada um tem a sua vez, cada um pode escolher o jogo que quer jogar, cada jogo tem um objetivo definido, cada jogada tem um tempo de acabar, existe começo, meio e fim, etc. Nessas atividades de convivência, os técnicos devem estar despidos de seu saber técnico, e devem servir simplesmente de modelo de gente, do mundo, como dissemos anteriormente, como aqueles que podem reconhecer o psicótico como representante da mesma cultura, e assim propiciar uma inclusão efetiva.


(Trabalho apresentado no 1o. Encontro de Caps i – DRS-1 – Osasco – SP – 20/06/2008)


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