17/01/2012

Ecos do ENAPOL





Com a apresentação de quase 293 trabalhos entre o sábado e o domingo (fora alguns de nossos colegas que ficaram presos por causa do vulcão), e mais as falas das conferências e de nossos seis AE’s, como contabilizar o saldo deste V Encontro Americano de Psicanálise de Orientação Lacaniana?

Primeira constatação óbvia: impossível estar em todas as mesas, participar de todas as discussões, aproveitar tudo o que o encontro oportunizou a cada um dos participantes. Temos somente nossos recortes, nossos pontos de vista, restos singulares de um todo impossível de ser recomposto. Isto posto, o objetivo deste relato aparece, finalmente, como um flash do encontro, um recorte particular, como um convite indecente para que outros se deixem mostrar também seus restos do encontro, um pouco do Enapol de cada um, para que consigamos tecer uma costura desses restos e termos acesso a algo mais do que cada um viu, produção de um laço feito de restos.

Com tantas mesas simultâneas, acabávamos encontrando os colegas no hall, apressados, saindo de uma discussão e apertando o passo em direção a outra. No mais, o tempo só dava pra um “E aí, você estava em que mesa? Foi bom? Tá indo pra onde? Depois a gente se encontra!”. Às vezes, já cansados, nos permitíamos desistir de entrar na próxima mesa, parávamos no hall pra esticar um pouco mais a conversa (e as pernas), como uma desculpa pra retomar o fôlego e recobrar as energias mentais que permitiriam às sinapses entre tico e teco se recuperarem. Nesses momentos de encontro, quando nos púnhamos a desenvolver um pouco mais o que havíamos acabado de escutar, “fulano disse isso e aquilo, foi muito interessante por causa disso e daquilo”, nosso interlocutor aceitava de bom grado nossa interrupção à maratona, e com um sorriso aliviado aproveitava pra pegar um copo d’água, agradecendo por termos esticado um pouco mais o assunto.

Aproveitávamos assim pra pegar um copo d’água e... Ué, cadê a água??? Infelizmente acabou a água, senhor! Como assim acabou a água? É, acabou a água. Com um pouquinho de insistência o garçom acabava por revelar que havia sido impreciso. Fazendo jus a um evento de psicanálise, bom garçom que era, nos lembrava que não devemos confiar tanto assim nos significantes, dado que a linguagem é equívoca: não é que a água tinha acabado, a água “gratuita” havia acabado. Se quiséssemos realmente beber água – e aí ele traz nova precisão dos conceitos, pelo hiato existente entre querer e desejar, visto que querer realmente pode ser quase desejar – era só entrarmos no bar do hotel e comprar aquela “garrafinha de dois goles” (não aquela de 500ml, mas aquela outra que tem o tamanho da antiga gini de limão) pela bagatela de 10 reais! Caramba, 10 reais a “garrafinha de dois goles”? Vi as pessoas andando com essa garrafinha pra lá e pra cá o dia inteiro, economizando nos goles, talvez pra terem a impressão que afinal a água não tinha saído tão cara assim...

Mas tudo estaria resolvido na hora do coffee break, eu pensava.  Saí correndo da sala onde estava pra evitar o empurra-empurra, e constatei que um monte de gente nem tinha ido pra última mesa só pra guardar lugar na fila do cafezinho, com medo que o cafezinho também acabasse! A fila era gigante, e pra evitar ter que entrar na fila duas vezes, o remédio era já pegar com uma mão o café, com a outra o suco, e beber de pé na fila dos petiscos.

Acabei desistindo do cafezinho “gratuito”, estava cansado das mesas que havia acabado de ouvir, e resolvi que merecia um pouco de conforto pós-trabalho. Fui pra varanda – um show à parte, com vista pro mar em um belo dia de sol – e resolvi me pagar um café. O garçom avisou – quem avisa amigo é – que o cafezinho custava 8 reais. “OITO REAIS?”, exclamei sem pudor, no que ele explicou, igualmente sem pudor: “Mas é café expresso...”. Como não cabia argumentar que também existia café expresso em Salvador, em São Paulo, em Medellin – e porque eu realmente precisava de um café àquela altura do campeonato – resolvi aceitar o café, e constatei que o garçom havia exagerado: quando trouxe a conta, o café havia custado seis e sessenta. Ainda fiquei feliz, pensando que afinal o café não tinha saído tão caro assim...

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Algumas mesas me chamaram mais atenção que outras. Trago aqui minhas impressões, o que as diferentes falas produziram em mim como reflexão, a partir da certeza de que minha interpretação de suas falas possa não corresponder ao que de fato cada um dos autores procurou transmitir.

A conferência de Laurent de sábado não me chamou tanta atenção quanto sua participação na mesa dos passes, no domingo. Sou incapaz de transcrever seus apontamentos aqui (espero que não demorem a sair publicados), mas a impressão que ficou em mim no domingo é que ele realmente trouxe apontamentos inéditos, produzindo um novo enodamento com relação à prática clínica, à teoria topológica, ao passe, assim como uma nova compreensão da loucura de cada um e do papel da Escola. Excelente.

Aliás, essa mesa dos passes teve um efeito profundo em mim: meu sentimento foi de uma renovação de minha transferência à Escola. O passe de Sérgio de Campos é fantástico, mas ler seu passe é uma coisa, e ouvi-lo gritar a intervenção de seu analista em uma sala com 1400 pessoas, “Ô cara, a mulher não existe!”, foi impressionante. Como frisou Laurent, cada relato trazia o corpo em uma costura singular ao sinthoma, e ouvir o grito de Sérgio ecoando em meus ouvidos gerou em mim esse sentimento de transferência renovada à Escola: o Outro não existe, estávamos vendo isso ao vivo e a cores. Queda de um certo ideal, afrouxamento do supereu: afinal, somos todos loucos. De volta à análise! Aqueles seis corpos expostos produziram em mim um efeito de enlace com relação à transmissão, na medida em que uma transmissão que seja borromeana não é só teoria: ela passa pelo corpo. 

Mostrar que se é louco, ou reduzir o abismo que o Outro produz entre o ideal e o real, em um esburacamento do Discurso do Mestre, é o que mostrou a segunda mesa do sábado. Que grande prazer escutar aquela mesa de não psicanalistas, e perceber que afinal não somos tão loucos assim, nosso discurso não é tão hermético assim: há outros que compartilham, ainda que com outros conceitos e significantes, de uma ética do sujeito. Fiquei tocado com a fala de Octávio Domont, que trouxe sua experiência como professor da UFRJ, onde, há cinco anos, procurou reestruturar o modelo da “apresentação de doentes” na matéria de psicopatologia. Se até então o modelo clássico se sustentava por um discurso que desnudava o dito do sujeito para a produção de um saber sobre ele, sobre sua patologia, saber sobre o alienado que reduz o sujeito a uma posição de objeto da teoria, objeto do saber do Outro, Octávio nos traz uma mudança de perspectiva que parece tão simples, quase óbvia, mas que produz uma radical diferença: ele propõe que o sujeito continue indo ao centro da sala de aula, mas não para apresentar sua doença, nem para que os outros a diagnostiquem conforme suas próprias categorias nosográficas. O sujeito irá falar de si, de sua vida, de sua experiência, e construir assim um saber próprio com relação ao que se passa com ele. Termina com um exemplo: se estudarmos e lermos nos livros bastante coisa sobre a natureza, provavelmente não a reconheceremos quando estivermos diante dela. O que me faz lembrar daquela outra história, do médico que chegou para o sujeito e perguntou: “Você é esquizofrênico?” “Não, sou Raimundo!”

Discurso do mestre versus discurso analítico, Heloísa Telles nos propõe uma reflexão sobre o cotidiano – muitas vezes nada pacífico – de uma psicanalista em instituição. O ponto que ela aborda toca em sua própria análise, e interessa a todos que, como eu, trabalham em instituição: seriam inconciliáveis os discursos do mestre e analítico? Em um primeiro momento sim, responde ela. Guiada por significantes familiares aos quais estava alienada, “ser solidária ao sofrimento do outro”, mostra que guiar-se por uma ética do bem fazia obstáculo à escuta. Responder às exigências protocolares do hospital, com um empuxo à homogeneização e à burocratização da assistência, servia apenas como proteção contra o real, alienada ao ideal dos significantes familiares. A partir de um atravessamento em sua própria análise, Heloísa se permite responder novamente à questão da conciliação: o discurso do mestre e o discurso analítico são a princípio inconciliáveis e opostos, mas o que permite uma conciliação possível é o atravessamento de nossa própria análise, que possibilita um reposicionamento do analista com relação à injunção burocrática do mestre. Antes que responder ou recusar qualquer protocolo institucional, podemos a partir desse giro propor protocolos singulares (por mais paradoxal que possa parecer um “protocolo não universal”), que respeitem a escuta particular de cada sujeito, um por um.

É essa mesma idéia que orienta o trabalho de Marcelo Magnelli, com o projeto Criamundo: a construção de protocolos singulares pode incluir desde a mais padronizada das soluções (inclusão social via trabalho formal) até a mais singular das soluções. Como os nomes do pai são plurais, um sujeito pode se beneficiar – estabilizar – com uma solução standard, pela via do ideal – porque não? – ao mesmo tempo que outro pode se beneficiar com uma solução singular, pela via dos dejetos.

O trabalho de Marcelo Veras me pareceu um trabalho que deveria ser apresentado também em um congresso de psiquiatria. Quando trabalhamos em instituições de saúde mental, estamos acostumados a ouvir que muitos pacientes, de tão desorganizados que chegam, precisam primeiro passar pelo médico, para que a medicação, ao fazer efeito, possa possibilitar ao sujeito enfim falar. Ou seja, precisam muitas vezes ser medicados para conseguirem começar a falar. Ora, Marcelo Veras nos traz a constatação clínica de que muitos pacientes são refratários ao medicamento, o corpo não responde.

Seguindo a idéia de Lévy-Strauss sobre a eficácia simbólica, propõe de maneira interessante uma inversão do paradigma: somente quando o remédio puder vir antecedido/acompanhado por uma palavra é que o efeito sobre o corpo pode ter alguma incidência. Nova conciliação possível entre os dois discursos, possível somente a partir de uma inflexão a partir de sua própria análise, como nos revela Marcelo.

Teria ainda muitos outros comentários a fazer. Deixarei para a próxima edição do Enapol.

17/06/11


















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