Com a apresentação de quase 293 trabalhos entre o sábado e o domingo (fora alguns de nossos colegas que ficaram presos por causa do vulcão), e mais as falas das conferências e de nossos seis AE’s, como contabilizar o saldo deste V Encontro Americano de Psicanálise de Orientação Lacaniana?
Primeira
constatação óbvia: impossível estar em todas as mesas, participar de todas as
discussões, aproveitar tudo o que o encontro oportunizou a cada um dos
participantes. Temos somente nossos recortes, nossos pontos de vista, restos
singulares de um todo impossível de ser recomposto. Isto posto, o objetivo
deste relato aparece, finalmente, como um flash do encontro, um recorte particular,
como um convite indecente para que outros se deixem mostrar também seus restos
do encontro, um pouco do Enapol de cada um, para que consigamos tecer uma
costura desses restos e termos acesso a algo mais do que cada um viu, produção
de um laço feito de restos.
Com
tantas mesas simultâneas, acabávamos encontrando os colegas no hall,
apressados, saindo de uma discussão e apertando o passo em direção a outra. No
mais, o tempo só dava pra um “E aí, você estava em que mesa? Foi bom? Tá indo
pra onde? Depois a gente se encontra!”. Às vezes, já cansados, nos permitíamos desistir
de entrar na próxima mesa, parávamos no hall pra esticar um pouco mais a
conversa (e as pernas), como uma desculpa pra retomar o fôlego e recobrar as
energias mentais que permitiriam às sinapses entre tico e teco se recuperarem. Nesses
momentos de encontro, quando nos
púnhamos a desenvolver um pouco mais o que havíamos acabado de escutar, “fulano
disse isso e aquilo, foi muito interessante por causa disso e daquilo”, nosso
interlocutor aceitava de bom grado nossa interrupção à maratona, e com um
sorriso aliviado aproveitava pra pegar um copo d’água, agradecendo por termos
esticado um pouco mais o assunto.
Aproveitávamos
assim pra pegar um copo d’água e... Ué, cadê a água??? Infelizmente acabou a
água, senhor! Como assim acabou a água? É, acabou a água. Com um pouquinho de
insistência o garçom acabava por revelar que havia sido impreciso. Fazendo jus
a um evento de psicanálise, bom garçom que era, nos lembrava que não devemos
confiar tanto assim nos significantes, dado que a linguagem é equívoca: não é
que a água tinha acabado, a água “gratuita” havia acabado. Se quiséssemos realmente beber água – e aí ele traz nova precisão dos conceitos,
pelo hiato existente entre querer e desejar, visto que querer realmente pode ser quase desejar
– era só entrarmos no bar do hotel e comprar aquela “garrafinha de dois goles”
(não aquela de 500ml, mas aquela outra que tem o tamanho da antiga gini de limão) pela bagatela de 10
reais! Caramba, 10 reais a “garrafinha de dois goles”? Vi as pessoas andando
com essa garrafinha pra lá e pra cá o dia inteiro, economizando nos goles,
talvez pra terem a impressão que afinal a água não tinha saído tão cara
assim...
Mas
tudo estaria resolvido na hora do coffee break, eu pensava. Saí correndo da sala onde estava pra evitar o
empurra-empurra, e constatei que um monte de gente nem tinha ido pra última
mesa só pra guardar lugar na fila do cafezinho, com medo que o cafezinho também
acabasse! A fila era gigante, e pra evitar ter que entrar na fila duas vezes, o
remédio era já pegar com uma mão o café, com a outra o suco, e beber de pé na
fila dos petiscos.
Acabei
desistindo do cafezinho “gratuito”, estava cansado das mesas que havia acabado
de ouvir, e resolvi que merecia um pouco de conforto pós-trabalho. Fui pra varanda
– um show à parte, com vista pro mar em um belo dia de sol – e resolvi me pagar
um café. O garçom avisou – quem avisa amigo é – que o cafezinho custava 8
reais. “OITO REAIS?”, exclamei sem pudor, no que ele explicou, igualmente sem
pudor: “Mas é café expresso...”. Como não cabia argumentar que também existia
café expresso em Salvador, em São Paulo, em Medellin – e porque eu realmente
precisava de um café àquela altura do campeonato – resolvi aceitar o café, e
constatei que o garçom havia exagerado: quando trouxe a conta, o café havia
custado seis e sessenta. Ainda fiquei feliz, pensando que afinal o café não tinha
saído tão caro assim...
. . .
Algumas
mesas me chamaram mais atenção que outras. Trago aqui minhas impressões, o que
as diferentes falas produziram em mim como reflexão, a partir da certeza de que
minha interpretação de suas falas possa não corresponder ao que de fato cada um
dos autores procurou transmitir.
A
conferência de Laurent de sábado não me chamou tanta atenção quanto sua
participação na mesa dos passes, no domingo. Sou incapaz de transcrever seus
apontamentos aqui (espero que não demorem a sair publicados), mas a impressão
que ficou em mim no domingo é que ele realmente trouxe apontamentos inéditos,
produzindo um novo enodamento com relação à prática clínica, à teoria
topológica, ao passe, assim como uma nova compreensão da loucura de cada um e
do papel da Escola. Excelente.
Aliás,
essa mesa dos passes teve um efeito profundo em mim: meu sentimento foi de uma
renovação de minha transferência à Escola. O passe de Sérgio de Campos é
fantástico, mas ler seu passe é uma coisa, e ouvi-lo gritar a intervenção de
seu analista em uma sala com 1400 pessoas, “Ô cara, a mulher não existe!”, foi impressionante.
Como frisou Laurent, cada relato trazia o corpo em uma costura singular ao
sinthoma, e ouvir o grito de Sérgio ecoando em meus ouvidos gerou em mim esse
sentimento de transferência renovada à Escola: o Outro não existe, estávamos
vendo isso ao vivo e a cores. Queda de um certo ideal, afrouxamento do supereu:
afinal, somos todos loucos. De volta à análise! Aqueles seis corpos expostos
produziram em mim um efeito de enlace com relação à transmissão, na medida em
que uma transmissão que seja borromeana não é só teoria: ela passa pelo corpo.
Mostrar
que se é louco, ou reduzir o abismo que o Outro produz entre o ideal e o real, em
um esburacamento do Discurso do Mestre, é o que mostrou a segunda mesa do
sábado. Que grande prazer escutar aquela mesa de não psicanalistas, e perceber
que afinal não somos tão loucos assim, nosso discurso não é tão hermético
assim: há outros que compartilham, ainda que com outros conceitos e
significantes, de uma ética do sujeito. Fiquei tocado com a fala de Octávio
Domont, que trouxe sua experiência como professor da UFRJ, onde, há cinco anos,
procurou reestruturar o modelo da “apresentação de doentes” na matéria de
psicopatologia. Se até então o modelo clássico se sustentava por um discurso
que desnudava o dito do sujeito para a produção de um saber sobre ele, sobre
sua patologia, saber sobre o alienado que reduz o sujeito a uma posição de objeto
da teoria, objeto do saber do Outro, Octávio nos traz uma mudança de
perspectiva que parece tão simples, quase óbvia, mas que produz uma radical diferença:
ele propõe que o sujeito continue indo ao centro da sala de aula, mas não para
apresentar sua doença, nem para que os outros a diagnostiquem conforme suas
próprias categorias nosográficas. O sujeito irá falar de si, de sua vida, de
sua experiência, e construir assim um
saber próprio com relação ao que se passa com ele. Termina com um exemplo: se
estudarmos e lermos nos livros bastante coisa sobre a natureza, provavelmente
não a reconheceremos quando estivermos diante dela. O que me faz lembrar daquela
outra história, do médico que chegou para o sujeito e perguntou: “Você é esquizofrênico?”
“Não, sou Raimundo!”
Discurso
do mestre versus discurso analítico, Heloísa Telles nos propõe uma reflexão
sobre o cotidiano – muitas vezes nada pacífico – de uma psicanalista em
instituição. O ponto que ela aborda toca em sua própria análise, e interessa a
todos que, como eu, trabalham em instituição: seriam inconciliáveis os
discursos do mestre e analítico? Em um primeiro momento sim, responde ela.
Guiada por significantes familiares aos quais estava alienada, “ser solidária
ao sofrimento do outro”, mostra que guiar-se por uma ética do bem fazia
obstáculo à escuta. Responder às exigências protocolares do hospital, com um
empuxo à homogeneização e à burocratização da assistência, servia apenas como
proteção contra o real, alienada ao ideal dos significantes familiares. A
partir de um atravessamento em sua própria análise, Heloísa se permite
responder novamente à questão da conciliação: o discurso do mestre e o discurso
analítico são a princípio inconciliáveis e opostos, mas o que permite uma
conciliação possível é o atravessamento de nossa própria análise, que possibilita
um reposicionamento do analista com relação à injunção burocrática do mestre.
Antes que responder ou recusar qualquer protocolo institucional, podemos a
partir desse giro propor protocolos
singulares (por mais paradoxal que possa parecer um “protocolo não
universal”), que respeitem a escuta particular de cada sujeito, um por um.
É
essa mesma idéia que orienta o trabalho de Marcelo Magnelli, com o projeto
Criamundo: a construção de protocolos singulares pode incluir desde a mais
padronizada das soluções (inclusão social via trabalho formal) até a mais
singular das soluções. Como os nomes do pai são plurais, um sujeito pode se
beneficiar – estabilizar – com uma solução standard,
pela via do ideal – porque não? – ao mesmo tempo que outro pode se beneficiar
com uma solução singular, pela via dos dejetos.
O
trabalho de Marcelo Veras me pareceu um trabalho que deveria ser apresentado também
em um congresso de psiquiatria. Quando trabalhamos em instituições de saúde
mental, estamos acostumados a ouvir que muitos pacientes, de tão desorganizados
que chegam, precisam primeiro passar pelo médico, para que a medicação, ao
fazer efeito, possa possibilitar ao sujeito enfim falar. Ou seja, precisam
muitas vezes ser medicados para conseguirem começar a falar. Ora, Marcelo Veras
nos traz a constatação clínica de que muitos pacientes são refratários ao
medicamento, o corpo não responde.
Seguindo
a idéia de Lévy-Strauss sobre a eficácia
simbólica, propõe de maneira interessante uma inversão do paradigma: somente
quando o remédio puder vir antecedido/acompanhado por uma palavra é que o
efeito sobre o corpo pode ter alguma incidência. Nova conciliação possível
entre os dois discursos, possível somente a partir de uma inflexão a partir de
sua própria análise, como nos revela Marcelo.
Teria
ainda muitos outros comentários a fazer. Deixarei para a próxima edição do
Enapol.
17/06/11
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